ALGUMAS REFLEXÕES SOCIOLÓGICAS SOBRE
“URBANIZAÇÃO” E “FAVELIZAÇÃO”
Ney Jansen Ferreira Neto
Resenha
do livro Mike Davis, Planeta Favela (2006). Boitempo Editorial. São
Paulo[1]
O que são
favelas?
As primeiras definições
de favela (em inglês, slums) vem do século XIX e eram
sinônimas de estelionato ou de comércio criminoso. As “favelas clássicas” eram
caracterizadas no século XIX como uma mistura de habitações dilapidadas,
excesso de população, doença, pobreza e vício. Para a literatura liberal do
século XIX, a dimensão moral era decisiva e a favela era vista acima de tudo
como um lugar onde um “resíduo” social, incorrigível e feroz apodrecia em um
esplendor “imoral” e quase sempre turbulento.
A ONU –no documento The
Challenge of Slums- conservou a definição “técnica” da favela
caracterizada por excesso de população, habitações pobres ou informais, acesso
inadequado a água potável e condições sanitárias e insegurança da posse da
moradia. Essa “definição operacional” segundo o pesquisador Mike Davis, é
superficial, restrita às características físicas e legais do assentamento e
evita as dimensões sociais.
O grande marco de
interpretações que podemos chamar de “tecnicistas” nos estudos sobre o problema
demográfico foram as teorias do reverendo Thomas
Malthus (1766-1834). Malthus desenvolve sua “teoria da população” confrontado com as transformações advindas da
revolução industrial. Segundo
Malthus a pobreza não era explicada por condições de exploração mas pelo fato
da população aumentar mais depressa do que a capacidade de subsistência. As
interpretações neo-malthusianas que culpabilizam o crescimento demográfico
excessivo como potencializador da pobreza estiveram presentes na teoria e
prática governamentais ao longo do século XX e permanecem no século XXI.
De acordo com Mike
Davis há no mundo uma grande explosão
demográfica: “em 1950 havia 86
cidades do mundo com mais de 1 milhão de habitantes, em 2006 são 400, em 2015
serão 550”; “as cidades absorveram
dois terços da explosão populacional desde 1950”; “a força de trabalho no mundo dobrou desde 1980 e a população urbana
atual é de 3,2 bilhões de pessoas”, “nos
próximos anos a população urbana mundial vai superar pela primeira vez a rural”.
Porém, o mais importante não é a mera verificação empírica da explosão
demográfica (como fez Malthus) e sim compreender o significado das principais transformações sociais que estão na
base dessa explosão demográfica.
A estagnação do emprego, o aumento da precarização e do trabalho informal, a desindustrialização (fechamento de
fábricas), a queda na produtividade
agrícola, verificado em alguns países do chamado “terceiro mundo” são os
principais fatores apontados pelo pesquisador. A “modernização do campo” tem sido outro fator de crise. Com a
entrada das grandes multinacionais da agroindústria em vários países, que por
sinal controlam boa parte da propriedade da terra (o velho latifúndio) os
pequenos produtores e camponeses pobres não terem condição de competir no
mercado. As conseqüências da “modernização do campo” são a desruralização, a descampenização.
Os agricultores pobres ficam vulneráveis a seca, inflação, juros altos,
especulação com o preço dos alimentos, ou à doenças, gerando o êxodo da mão de
obra rural para as favelas urbanas.
A segregação espacial e social
Segundo Mike Davis a
segregação espacial e social no chamado “primeiro mundo” possui dois modelos.
No modelo das cidades nos Estados Unidos,
a população mais pobre mora em “forma de anel”, com os pobres concentrados no
centro. Na Europa, o modelo são as
“cidades-pires” com a população de imigrantes e desempregados em prédios na
orla externa da cidade. “Os pobres nos
EUA moram em mercúrio, os europeus em netuno ou plutão. Mas os do ‘terceiro
mundo’ ocupam várias órbitas urbanas”, diz Davis. A segregação espacial e
social em diversos países e cidades, nos cinco continentes, leva à busca por “segurança” e “isolamento social” por parte da elite e da classe média, sendo “obsessiva e universal” (DAVIES, p.
121). Além disso, a pobreza e a ocupação urbana derivada dela ampliam os riscos
geológicos e climáticos locais.
Na América Latina com a política “desenvolvimentista” por volta dos
anos 1940, provocou-se a migração rural-urbana, agravada pela concentração
fundiária. Em outras regiões do mundo o estímulo a migração rural-urbana
deveu-se à diversos fatores: à demanda por mão de obra barata nas cidades, às
guerras civis na África, a demanda por trabalho nos campos de petróleo no caso
do Oriente Médio, a “modernização da agricultura” e o crescimento da indústria.
Mas o Estado na maioria dos países do “terceiro mundo” não se dispôs a
construir moradias.
O abandono da ideia de
um Estado que combata os interesses do capital privado levou muitos governos a “abdicarem de qualquer iniciativa séria para
combater as favelas e remediar a marginalidade urbana”. (DAVIES, p. 70). A
segregação social e especial dita por Mike Davis também pode ser verificada em
reportagem publicada na Folha de S. Paulo em 07/10/09. Ao
citar o relatório “Planejando Cidades
Sustentáveis” da ONU verificou-se neste relatório que 200 mil pessoas deixam o campo e vão para a cidade a cada dia no mundo.
A referida reportagem ouviu Raquel
Rolnik, professora da FAU (Faculdade
de Arquitetura e Urbanismo da USP) e a época membro da ONU que disse:
“O planejamento
urbano não leva em conta a população mais pobre. Todas as áreas planejadas são
voltadas para o mercado imobiliário e para a classe média". A professora
Rolnik destacou ainda à Folha sobre o
recente programa brasileiro “Minha Casa, Minha Vida” que tinha como meta
construir 1milhão de casas, com um investimento de R$ 34 bilhões: "Esse
programa tem o grande risco de criar guetos nas áreas mais pobres das cidades.
Vão criar casas de pobres na ‘não cidade’, onde não há infraestrutura. Existem
ferramentas para evitar isso, mas o governo resiste a usá-las", diz
Rolnik”.
Servindo de mais um
elemento de reflexão, o censo 2010 do
IBGE revelou existir no Brasil 6,07 milhões de domicílios vagos, constatando que para se assentar a população carente de moradia o
governo precisaria dispor de 5,8 milhões
de moradias. Ou seja, a quantidade de imóveis vazios no Brasil supera em
cerca de 200 mil a quantidade de imóveis que o governo precisaria construir. Em
São Paulo, o número de moradias
corresponde a 1,112 milhão, sendo
que o número de sem tetos beira a 1,127 milhão. Tais dados evidenciam as
contradições das atuais políticas de desenvolvimento urbano e o abandono de
alguns instrumentos jurídicos que existem, tais como previsto em nossa Constituição, como a função social da propriedade, para se
começar a resolver o problema.
Até que ponto esse
“proletariado informal” essa população marginalizada, pode empreender uma “ação
histórica” e se levantar contra as condições de pobreza e desigualdade? Sem ser
pessimista ou otimista Mike Davis destaca as várias reações a essa situação de
pobreza e marginalização em várias cidades do mundo (p. 201):
(...) até dentro
de uma só cidade, uma população favelada pode apresentar uma variedade
enlouquecedora de reações à privação e à negligência estruturais, que vão das
Igrejas Carismáticas e cultos proféticos, às milícias étnicas, a gangues de
rua, ONG’s neoliberais e movimentos sociais revolucionários. Com efeito, o
futuro da solidariedade urbana depende da recusa combativa dos novos pobres
urbanos a aceitar sua marginalidade terminal dentro do capitalismo global.
[1] O estadunidense Mike Davis,
professor do departamento de História Social da Universidade da Califórnia, é
uma das principais vozes no estudo na área do urbanismo. Mike Davis é autor de
conhecidos livros como Ecologia do medo (2000), Holocaustos coloniais
(2001), Cidade de quartzo: escavando o futuro em Los Angeles (1990,
2006), Planeta Favela (2006), Entre Cidades Mortas (2003), Em Louvor dos
Bárbaros: ensaios contra o império (2007) entre outros. O autor parte do estudo sobre a generalização das
favelas, tema do The Challenge of Slums –O Desafio das Favelas- publicado em
2003 pelo programa de assentamentos urbanos da ONU –UN-Habitat-. The Challenge of Slums baseou-se em estudo
sobre condições de vida nas favelas e da política habitacional de 34 metrópoles
coordenado pelo UN-Habitat e pela University
College London. Depois baseou-se num estudo comparativo de 237 cidades do
mundo criado pelo programa de indicadores urbanos do UN-Habitat para a Cúpula
das Cidades “Istambul +5” de 2001.
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