Fonte: http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2012/03/para-marilena-chaui-ditadura-militar-fez-com-que-universidades-nao-oferecam-formacao-humanista
Marilena Chauí: A ditadura militar iniciou a devastação da escola pública
Violência
repressiva, privatização e a reforma universitária que fez uma educação voltada
à fabricação de mão de obra, são, na opinião da filósofa Marilena Chauí,
professora aposentada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
USP, as cicatrizes da ditadura no ensino universitário do país. Chauí relembrou
as duras passagens do período e afirma não mais acreditar na escola como espaço
de formação de pensamento crítico dos cidadãos, mas sim em outras formas de
agrupamento, como nos movimentos sociais, movimentos populares, ONGs e em
grupos que se formam com a rede de internet e nos partidos políticos.
Chauí, que
“fechou as portas para a mídia” e diz não conceder entrevistas desde 2003,
falou à Rede Brasil Atual após palestra feita no lançamento da Escola 28 de
Agosto, iniciativa do Sindicato dos Bancários de São Paulo que elogiou por projetar
cursos de administração que resgatem conteúdos críticos e humanistas dos quais
o meio universitário contemporâneo hoje se ressente.
Quais
foram os efeitos do regime autoritário e seus interesses ideológicos e
econômicos sobre o processo educacional do Brasil?
Vou dividir
minha resposta sobre o peso da ditadura na educação em três aspectos. Primeiro:
a violência repressiva que se abateu sobre os educadores nos três níveis,
fundamental, médio e superior. As perseguições, cassações, as expulsões, as prisões,
as torturas, mortes, desaparecimentos e exílios. Enfim, a devastação feita no
campo dos educadores. Todos os que tinham ideias de esquerda ou progressistas
foram sacrificados de uma maneira extremamente violenta. Em segundo lugar, a
privatização do ensino, que culmina agora no ensino superior, começou no ensino
fundamental e médio. As verbas não vinham mais para a escola pública, ela foi
definhando e no seu lugar surgiram ou se desenvolveram as escolas privadas. Eu
pertenço a uma geração que olhava com superioridade e desprezo para a escola
particular, porque ela era para quem ia pagar e não aguentava o tranco da
verdadeira escola. Durante a ditadura, houve um processo de privatização, que
inverte isso e faz com que se considere que a escola particular é que tem um
ensino melhor. A escola pública foi devastada, física e pedagogicamente,
desconsiderada e desvalorizada.
E o
terceiro aspecto?
A reforma
universitária. A ditadura introduziu um programa conhecido como MEC-Usaid, pelo
Departamento de Estado dos Estados Unidos, para a América Latina toda. Ele foi
bloqueado durante o início dos anos de 1960 por todos os movimentos de esquerda
no continente, e depois a ditadura o implantou. Essa implantação consistiu em
destruir a figura do curso com multiplicidade de disciplinas, que o estudante
decidia fazer no ritmo dele, do modo que ele pudesse, segundo o critério
estabelecido pela sua faculdade. Os cursos se tornaram sequenciais. Foi
estabelecido o prazo mínimo para completar o curso. Houve a departamentalização,
mas com a criação da figura do conselho de departamento, o que significava que
um pequeno grupo de professores tinha o controle sobre a totalidade do
departamento e sobre as decisões. Então você tem centralização. Foi dado ao
curso superior uma característica de curso secundário, que hoje chamamos de
ensino médio, que é a sequência das disciplinas e essa ideia violenta dos
créditos. Além disso, eles inventaram a divisão entre matérias obrigatórias e
matérias optativas. E, como não havia verba para contratação de novos
professores, os professores tiveram de se multiplicar e dar vários cursos.
Houve
um comprometimento da inteligência?
Exatamente.
E os professores, como eram forçados a dar essas disciplinas, e os alunos, a
cursá-las, para terem o número de créditos, elas eram chamadas de “optatórias e
obrigativas”, porque não havia diferença entre elas. Depois houve a falta de
verbas para laboratórios e bibliotecas, a devastação do patrimônio público, por
uma política que visava exclusivamente a formação rápida de mão de obra dócil
para o mercado. Aí, criaram a chamada licenciatura curta, ou seja, você fazia
um curso de graduação de dois anos e meio e tinha uma licenciatura para
lecionar. Além disso, criaram a disciplina de educação moral e cívica, para todos
os graus do ensino. Na universidade, havia professores que eram escalados para
dar essa matéria, em todos os cursos, nas ciências duras, biológicas e humanas.
A universidade que nós conhecemos hoje ainda é a universidade que a ditadura
produziu.
Essa
transformação conceitual e curricular das universidades acabou sendo, nos anos
de 1960, em vários países, um dos combustíveis dos acontecimentos de 1968 em
todo mundo.
Foi, no
mundo inteiro. Esse é o momento também em que há uma ampliação muito grande da
rede privada de universidades, porque o apoio ideológico para a ditadura era
dado pela classe média. Ela, do ponto de vista econômico, não produz capital, e
do ponto de vista política, não tem poder. Seu poder é ideológico. Então, a
sustentação que ela deu fez com que o governo considerasse que precisava
recompensá-la e mantê-la como apoiadora, e a recompensa foi garantir o diploma
universitário para a classe média. Há esse barateamento do curso superior, para
garantir o aumento do número de alunos da classe média para a obtenção do
diploma. É a hora em que são introduzidas as empresas do vestibular, o
vestibular unificado, que é um escândalo, e no qual surge a diferenciação entre
a licenciatura e o bacharelato. Foi uma coisa dramática, lutamos o que pudemos,
fizemos a resistência máxima que era possível fazer, sob a censura e sob o
terror do Estado, com o risco que se corria, porque nós éramos vigiados o tempo
inteiro. Os jovens hoje não têm ideia do que era o terror que se abatia sobre
nós. Você saía de casa para dar aula e não sabia se ia voltar, não sabia se ia
ser preso, se ia ser morto, não sabia o que ia acontecer, nem você, nem os
alunos, nem os outros colegas. Havia policiais dentro das salas de aula.
Houve
uma corrente muito forte na década de 1960, composta por professores como Aziz
Ab’Saber, Florestan Fernandes, Antônio Cândido, Maria Vitória Benevides, a
senhora, dentre outros, que queria uma universidade mais integrada às demandas
da comunidade. A senhora tem esperança de que isso volte a acontecer um dia?
Foi
simbólica a mudança da faculdade para o “pastus”, não é campus universitário,
porque, naquela época, era longe de tudo: você ficava em um isolamento
completo. A ideia era colocar a universidade fora da cidade e sem contato com
ela. Fizeram isso em muitos lugares. Mas essa sua pergunta é muito complicada,
porque tem de levar em consideração o que o neoliberalismo fez: a ideia de que
a escola é uma formação rápida para a competição no mercado de trabalho. Então
fazer uma universidade comprometida com o que se passa na realidade social e
política se tornou uma tarefa muito árdua e difícil.
Não
há tempo para um conceito humanista de formação?
É uma luta
isolada de alguns, de estudantes e professores, mas não a tendência da
universidade.
Hoje,
a esperança da formação do cidadão crítico está mais para as possibilidades de
ajustes curriculares no ensino fundamental e médio? Ou até nesses níveis a
educação forma estará comprometida com a produção de cabeças e mãos para o
mercado?
Na escola,
isso, a formação do cidadão crítico, não vai acontecer. Você pode ter essa
expectativa em outras formas de agrupamento, nos movimentos sociais, nos
movimentos populares, nas ONGs, nos grupos que se formam com a rede de internet
e nos partidos políticos. Na escola, em cima e em baixo, não. Você tem bolsões,
mas não como uma tendência da escola.
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