A Igreja Católica, a Bíblia e a Escravidão
Wladimir Jansen Ferreira
A igreja Católica, na transição do Feudalismo para
o Capitalismo, influenciou negativamente na reprodução de uma visão racista em
relação aos negros africanos. Em meados dos anos 1500, muitos membros do Vaticano
formulariam uma tese de que “todo negro seria descendente de Cam (filho de
Noé), que teria desrespeitado o seu pai, recebendo uma “marca” e sendo
amaldiçoado”: “Que ele seja o último dos
escravos de seus irmãos” (Gênesis, 9: 5-27).
Muitos defensores da
escravidão de negros africanos utilizaram a passagem bíblica do “pecado e
zombaria de Cam (filho de Noé)” para justificar a escravidão no mundo.
Entretanto, houve uma “leitura errada” de algumas pessoas durante muitos
séculos (sobretudo no período escravista entre os séculos XVI e XIX). Além do
mais, é imperdoável qualquer tipo de escravidão, sendo esta, destinada aos
“cananeus” e não aos negros africanos.
Vamos à história bíblica.
Cam e seu filho Canaã (em Genesis,
Capítulo IX, versículos 21 a 27) teriam visto
Noé bêbado e desmaiado despido no chão, zombando-o e chamando outros irmãos
para verem a cena (sendo que Sem Jafé cobriram o pai). Quando Noé acorda,
profetizaria bênçãos e maldições sobre os seus três filhos baseado nos
acontecimentos. Teoricamente Noé teria amaldiçoado somente Canaã pelo
desrespeito (algumas teses falam em tendências homossexuais dos dois e de
incesto de Cam com sua mãe) e não teria amaldiçoado os outros filhos de Cam (Cuxe
e Pute, que se tornariam os ancestrais dos etíopes e dos povos negros da
África). Isto significa que os cananeus da Palestina (que seriam “notáveis por sua corrupção sexual”) deveriam
ser escravos dos semitas (linhagem judaica) e dos jafetitas (povos
indo-europeus). Segundo a posição de vários biblistas e historiadores, os
canaanitas foram totalmente extintos.
Esta história bíblica do
Antigo Testamento foi arbitrariamente aplicada à África Negra, e utilizada como
instrumento para justificar a escravidão e os preconceitos raciais. Alguns escravagistas
chegaram ao absurdo de sugerir que Deus ordenou a escravidão da raça negra e
indígena como veremos abaixo.
A maldição de Cam foi usada
por alguns membros de religiões
abraâmicas (judaísmo, o cristianismo e o islamismo) para justificar o racismo e a escravidão eterna de negros africanos, quem acreditavam ser
descendentes de Cam[1]. Nos Estados Unidos, muitos escravagistas invocaram consistentemente este relato da Bíblia ao
longo do século 19 em resposta ao crescimento do movimento abolicionista[2]. Os Portugueses consideravam os negros descendentes de Cam e a
sua cor era o sinal da maldição e justificava a escravidão[3]. No Brasil, a
maldição de Cam serviu de justificativa para escravizar os índios, tendo
missionário da Ordem de São Pedro João de Sousa Ferreira afirmado "Não há
lei divina nem humana que proíba a possessão de escravos" e continuou
"(e os índios brasileiros) são da descendência da maldição de Ham"[4].
Neste sentido, segundo
ADAS (1993), no século XVI, o frei Bartolomeu de Las Casas era um denunciador
das atrocidades a que eram submetidas os indígenas no continente americano,
sugerindo à cora espanhola em 1517 que não escravizassem os indígenas, mas que
importassem negros africanos para servir como mão-de-obra nas terras americanas.
Em 1518, a coroa espanhola realizou o primeiro contrato para o tráfico de
escravos africanos da história. Apesar do frei Bartolomeu de Las Casas ter se
arrependido de sua “sugestão”, esta foi uma demonstração de como as elites
daquela época já eram racistas.
Segundo
RIBEIRO (1995, p. 39-40), o Vaticano estabeleceu as normas básicas de ação
colonizadora ao justificar a exploração europeia contra os “pagãos”. Isto pode
ser verificado na bula
Romanus
Pontifex,
de
8
de
janeiro
de
1454,
do
papa
Nicolau
V:
Não sem grande alegria chegou ao nosso conhecimento que
nosso dileto filho infante D. Henrique, incendido no ardor da fé e zelo da
salvação das almas, se esforça por fazer conhecer e venerar em todo o orbe o
nome gloriosíssimo de Deus, reduzindo à sua fé não só os sarracenos, inimigos
dela, como também quaisquer outros infiéis.
Guinéus e negros tomados pela força, outros legitimamente
adquiridos foram trazidos ao reino, o que esperam os progrida até a conversão
do povo ou ao menos de muitos mais. Por isso nós, tudo pensando com devida
ponderação, concedemos ao dito rei Afonso a plena e livre faculdade, entre
outras, de invadir, conquistar, subjugar a quaisquer sarracenos e pagãos,
inimigos de Cristo, suas terras e bens, a todos reduzir à servidão e tudo
praticar em utilidade própria e dos seus descendentes. Tudo declaramos
pertencer de direito in perpetum aos
mesmos D. Afonso e seus sucessores, e ao infante. Se alguém, individuo ou
coletividade, infringir essas determinações, seja excomungado [...] (in Baião
1939:36-7)
RIBEIRO
(1995, p. 40), mostra que o Vaticano na
bula
Inter
Coetera,
de
4
de
maio
de
1493, também legitimará a escravidão dos nativos
indígenas da América pela Espanha e Portugal:
[...] por nossa mera liberalidade, e de ciência certa, e
em razão da plenitude do poder Apostólico, todas ilhas e terras firmes achadas
e por achar, descobertas ou por descobrir, para o Ocidente e o Meio-Dia,
fazendo e construindo uma linha desde o pólo Ártico [...] quer sejam terras
firmes e ilhas encontradas e por encontrar em direção à Índia, ou em direção a
qualquer parte, a qual linha diste de qualquer das ilhas que vulgarmente são
chamadas de Açores e Cabo Verde cem léguas para o Ocidente e o Meio-Dia [...] A
Vós e a vossos herdeiros e sucessores (reis de Castela e Leão) pela autoridade
do Deus onipotente a nós concedida em S. Pedro, assim como do vicariado de
Jesus Cristo, a qual exercemos na terra, para sempre, no teor das presentes,
vô-las doamos, concedemos e entregamos com todos os seus domínios, cidades,
fortalezas, lugares, vilas, direitos, jurisdições e todas as pertenças. E a vós
e aos sobreditos herdeiros e sucessores, vos fazemos, constituímos e deputamos
por senhores das mesmas, com pleno, livre e onímodo poder, autoridade e
jurisdição. [...] sujeitar a vós, por favor da Divina Clemência, as terras
firmes e ilhas sobreditas, e os moradores e habitantes dela, e reduzi-los à Fé
Católica [...] (in Macedo Soares, 1939: 25-8).
Esta passagem da BÍBLIA (2010, p. 88) também
legitima a escravidão de povos:
O escravo ou a escrava que
tiveres virão das nações que vos cercam. Deles podereis comprar escravos e
escravas. Podereis também comprá-los entre os filhos dos estrangeiros que vivem
convosco, nascidos no país, ou entre as famílias que moram convosco. Serão
propriedade vossa, e podereis deixá-los como propriedade hereditária aos vossos
filhos. Deles sempre podereis servir-vos como escravos, mas quantos aos vossos
irmãos israelitas, ninguém domine com dureza o irmão. (in Levítico 25:44-46)
A Igreja Católica
contribuiu negativamente para a reprodução da escravidão. Apesar de muitos
setores da Igreja Católica terem lutado contrariamente à escravidão (caso dos
jesuítas que fizeram as "missões" na América Latina), em contra
partida estava o aculturamento dos indígenas e a imposição de valores
ocidentais-cristãos aos "primitivos indígenas".
O jesuíta José de Anchieta
no poema épico "De gestis Mendi de Saa" descreve os índios como
"lobos vorazes, furiosos cães e cruéis leões que nutriam o ávido ventre
com carnes humanas". Estes índios "selvagens e animalescos"
abandonaram Deus e precisavam ser catequizados para escaparem "das
garras de Satanás". A gramática que Anchieta fez
da língua geral se tornou uma ferramenta eficaz para aculturar os indígenas e
impor a cultura europeia. Suas peças de teatro, de caráter pedagógico,
encenadas pelos índios catequizados, classificaram como
"demônios" os personagens da mitologia tupi, condenando o fumo,
a medicina indígena, as malocas coletivas, o cauim e os rituais.
Anchieta foi um fiel servidor do sistema colonial, um “agente
do Estado português”. Em uma de suas famosas carta (publicadas em agosto
de 1980 pelo Porantim,
jornal do Conselho Indigenista Missionário, o CIMI), Anchieta trata os
Tupinambás como "inimigos
carniceiros" e se rejubila por haver conseguido jogar os índios uns
contra os outros nos conflitos entre portugueses e franceses:
E foi coisa maravilhosa que se achavam e
encontravam a flechadas irmãos com irmãos, primos com primos, sobrinhos com
tios e mais ainda dois filhos que eram cristãos e estavam do nosso lado contra
seu pai que estava contra nós.
Outro jesuíta, o padre Antônio Vieira, defendeu a
catequese como única via para transformar o "índio bárbaro” em “civilizado”:
É uma pedra, como dizeis, o
índio rude? Pois trabalhai e continuai com ele. Aplicai o cinzel um dia e outro
dia; dai uma martelada e outra martelada e vereis como dessa pedra tosca e
informe fazeis não só um homem senão um cristão e pode ser um santo.
Portanto, a Igreja Católica tem muito que se retratar por ter se calado, consentido e apoiado a escravidão em vários momentos da história, sendo mais um momento vergonhoso desta instituição religiosa.
[1] Daly, John Patrick When Slavery Was Called
Freedom: Evangelicalism, Proslavery, and the Causes of the Civil War (Religion
in the South The University Press of Kentucky (31 Oct 2004) ISBN
978-0813190938 p.37) e Taslitz, Andrew E. Reconstructing the
Fourth Amendment: a history of search and seizure, 1789-1868 New York
University Press (15 Oct 2006) ISBN 978-0814782637 p.99.
[2] Sylvester A. Johnson. The myth of Ham in
nineteenth-century American Christianity: race, heathens, and the people of God.
[S.l.]: Macmillan, 2004.
p. 37. ISBN 9781403965622.
[3] HISTÓRICA -
Revista Eletrônica do Arquivo do Estado.
historica.arquivoestado.sp.gov.br. Página visitada em 4 de dezembro de 2010.
[4] John Hemming,Carlos
Eugênio Marcondes de Moura. Ouro Vermelho:A Conquista dos Índios
Brasileiros. S.l.: s.n..
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