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sexta-feira, 11 de abril de 2014

A Igreja Católica, a Bíblia e a Escravidão

A Igreja Católica, a Bíblia e a Escravidão

Wladimir Jansen Ferreira

A igreja Católica, na transição do Feudalismo para o Capitalismo, influenciou negativamente na reprodução de uma visão racista em relação aos negros africanos. Em meados dos anos 1500, muitos membros do Vaticano formulariam uma tese de que “todo negro seria descendente de Cam (filho de Noé), que teria desrespeitado o seu pai, recebendo uma “marca” e sendo amaldiçoado”: “Que ele seja o último dos escravos de seus irmãos” (Gênesis, 9: 5-27).
Muitos defensores da escravidão de negros africanos utilizaram a passagem bíblica do “pecado e zombaria de Cam (filho de Noé)” para justificar a escravidão no mundo. Entretanto, houve uma “leitura errada” de algumas pessoas durante muitos séculos (sobretudo no período escravista entre os séculos XVI e XIX). Além do mais, é imperdoável qualquer tipo de escravidão, sendo esta, destinada aos “cananeus” e não aos negros africanos.
Vamos à história bíblica. Cam e seu filho Canaã (em Genesis, Capítulo IX, versículos 21 a 27) teriam visto Noé bêbado e desmaiado despido no chão, zombando-o e chamando outros irmãos para verem a cena (sendo que Sem Jafé cobriram o pai). Quando Noé acorda, profetizaria bênçãos e maldições sobre os seus três filhos baseado nos acontecimentos. Teoricamente Noé teria amaldiçoado somente Canaã pelo desrespeito (algumas teses falam em tendências homossexuais dos dois e de incesto de Cam com sua mãe) e não teria amaldiçoado os outros filhos de Cam (Cuxe e Pute, que se tornariam os ancestrais dos etíopes e dos povos negros da África). Isto significa que os cananeus da Palestina (que seriam “notáveis por sua corrupção sexual”) deveriam ser escravos dos semitas (linhagem judaica) e dos jafetitas (povos indo-europeus). Segundo a posição de vários biblistas e historiadores, os canaanitas foram totalmente extintos.
Esta história bíblica do Antigo Testamento foi arbitrariamente aplicada à África Negra, e utilizada como instrumento para justificar a escravidão e os preconceitos raciais. Alguns escravagistas chegaram ao absurdo de sugerir que Deus ordenou a escravidão da raça negra e indígena como veremos abaixo.
A maldição de Cam foi usada por alguns membros de religiões abraâmicas (judaísmo, o cristianismo e o islamismo) para justificar o racismo e a escravidão eterna de negros africanos, quem acreditavam ser descendentes de Cam[1]. Nos Estados Unidos, muitos escravagistas invocaram consistentemente este relato da Bíblia ao longo do século 19 em resposta ao crescimento do movimento abolicionista[2]. Os Portugueses consideravam os negros descendentes de Cam e a sua cor era o sinal da maldição e justificava a escravidão[3]. No Brasil, a maldição de Cam serviu de justificativa para escravizar os índios, tendo missionário da Ordem de São Pedro João de Sousa Ferreira afirmado "Não há lei divina nem humana que proíba a possessão de escravos" e continuou "(e os índios brasileiros) são da descendência da maldição de Ham"[4].
Neste sentido, segundo ADAS (1993), no século XVI, o frei Bartolomeu de Las Casas era um denunciador das atrocidades a que eram submetidas os indígenas no continente americano, sugerindo à cora espanhola em 1517 que não escravizassem os indígenas, mas que importassem negros africanos para servir como mão-de-obra nas terras americanas. Em 1518, a coroa espanhola realizou o primeiro contrato para o tráfico de escravos africanos da história. Apesar do frei Bartolomeu de Las Casas ter se arrependido de sua “sugestão”, esta foi uma demonstração de como as elites daquela época já eram racistas.
Segundo RIBEIRO (1995, p. 39-40), o Vaticano estabeleceu as normas básicas de ação colonizadora ao justificar a exploração europeia contra os “pagãos”. Isto pode ser verificado na bula Romanus Pontifexde de janeiro
 de1454,do papa Nicolau V:


Não sem grande alegria chegou ao nosso conhecimento que nosso dileto filho infante D. Henrique, incendido no ardor da fé e zelo da salvação das almas, se esforça por fazer conhecer e venerar em todo o orbe o nome gloriosíssimo de Deus, reduzindo à sua fé não só os sarracenos, inimigos dela, como também quaisquer outros infiéis.
Guinéus e negros tomados pela força, outros legitimamente adquiridos foram trazidos ao reino, o que esperam os progrida até a conversão do povo ou ao menos de muitos mais. Por isso nós, tudo pensando com devida ponderação, concedemos ao dito rei Afonso a plena e livre faculdade, entre outras, de invadir, conquistar, subjugar a quaisquer sarracenos e pagãos, inimigos de Cristo, suas terras e bens, a todos reduzir à servidão e tudo praticar em utilidade própria e dos seus descendentes. Tudo declaramos pertencer de direito in perpetum aos mesmos D. Afonso e seus sucessores, e ao infante. Se alguém, individuo ou coletividade, infringir essas determinações, seja excomungado [...] (in Baião 1939:36-7)


RIBEIRO (1995, p. 40), mostra que o Vaticano nbula Inter Coetera,
 de de maio de 1493, também legitimará a escravidão dos nativos indígenas da América pela Espanha e Portugal:
[...] por nossa mera liberalidade, e de ciência certa, e em razão da plenitude do poder Apostólico, todas ilhas e terras firmes achadas e por achar, descobertas ou por descobrir, para o Ocidente e o Meio-Dia, fazendo e construindo uma linha desde o pólo Ártico [...] quer sejam terras firmes e ilhas encontradas e por encontrar em direção à Índia, ou em direção a qualquer parte, a qual linha diste de qualquer das ilhas que vulgarmente são chamadas de Açores e Cabo Verde cem léguas para o Ocidente e o Meio-Dia [...] A Vós e a vossos herdeiros e sucessores (reis de Castela e Leão) pela autoridade do Deus onipotente a nós concedida em S. Pedro, assim como do vicariado de Jesus Cristo, a qual exercemos na terra, para sempre, no teor das presentes, vô-las doamos, concedemos e entregamos com todos os seus domínios, cidades, fortalezas, lugares, vilas, direitos, jurisdições e todas as pertenças. E a vós e aos sobreditos herdeiros e sucessores, vos fazemos, constituímos e deputamos por senhores das mesmas, com pleno, livre e onímodo poder, autoridade e jurisdição. [...] sujeitar a vós, por favor da Divina Clemência, as terras firmes e ilhas sobreditas, e os moradores e habitantes dela, e reduzi-los à Fé Católica [...] (in Macedo Soares, 1939: 25-8).

Esta passagem da BÍBLIA (2010, p. 88) também legitima a escravidão de povos:
O escravo ou a escrava que tiveres virão das nações que vos cercam. Deles podereis comprar escravos e escravas. Podereis também comprá-los entre os filhos dos estrangeiros que vivem convosco, nascidos no país, ou entre as famílias que moram convosco. Serão propriedade vossa, e podereis deixá-los como propriedade hereditária aos vossos filhos. Deles sempre podereis servir-vos como escravos, mas quantos aos vossos irmãos israelitas, ninguém domine com dureza o irmão. (in Levítico 25:44-46)


           A Igreja Católica contribuiu negativamente para a reprodução da escravidão. Apesar de muitos setores da Igreja Católica terem lutado contrariamente à escravidão (caso dos jesuítas que fizeram as "missões" na América Latina), em contra partida estava o aculturamento dos indígenas e a imposição de valores ocidentais-cristãos aos "primitivos indígenas".
O jesuíta José de Anchieta no poema épico "De gestis Mendi de Saa" descreve os índios como "lobos vorazes, furiosos cães e cruéis leões que nutriam o ávido ventre com carnes humanas". Estes índios "selvagens e animalescos" abandonaram Deus e precisavam ser catequizados para escaparem "das garras de Satanás". A gramática que Anchieta fez da língua geral se tornou uma ferramenta eficaz para aculturar os indígenas e impor a cultura europeia. Suas peças de teatro, de caráter pedagógico, encenadas pelos índios catequizados, classificaram como "demônios" os personagens da mitologia tupi, condenando o fumo, a medicina indígena, as malocas coletivas, o cauim e os rituais.
Anchieta foi um fiel servidor do sistema colonial, um “agente do Estado português”. Em uma de suas famosas carta (publicadas em agosto de 1980 pelo Porantim, jornal do Conselho Indigenista Missionário, o CIMI), Anchieta trata os Tupinambás como "inimigos carniceiros" e se rejubila por haver conseguido jogar os índios uns contra os outros nos conflitos entre portugueses e franceses:
E foi coisa maravilhosa que se achavam e encontravam a flechadas irmãos com irmãos, primos com primos, sobrinhos com tios e mais ainda dois filhos que eram cristãos e estavam do nosso lado contra seu pai que estava contra nós.

 Outro jesuíta, o padre Antônio Vieira, defendeu a catequese como única via para transformar o "índio bárbaro” em “civilizado”:
É uma pedra, como dizeis, o índio rude? Pois trabalhai e continuai com ele. Aplicai o cinzel um dia e outro dia; dai uma martelada e outra martelada e vereis como dessa pedra tosca e informe fazeis não só um homem senão um cristão e pode ser um santo.

      Portanto, a Igreja Católica tem muito que se retratar por ter se calado, consentido e apoiado a escravidão em vários momentos da história, sendo mais um momento vergonhoso desta instituição religiosa.






[1] Daly, John Patrick When Slavery Was Called Freedom: Evangelicalism, Proslavery, and the Causes of the Civil War (Religion in the South The University Press of Kentucky (31 Oct 2004) ISBN 978-0813190938 p.37) e Taslitz, Andrew E. Reconstructing the Fourth Amendment: a history of search and seizure, 1789-1868 New York University Press (15 Oct 2006) ISBN 978-0814782637 p.99.
[2] Sylvester A. Johnson. The myth of Ham in nineteenth-century American Christianity: race, heathens, and the people of God. [S.l.]: Macmillan, 2004. p. 37. ISBN 9781403965622.
[3] HISTÓRICA - Revista Eletrônica do Arquivo do Estado. historica.arquivoestado.sp.gov.br. Página visitada em 4 de dezembro de 2010.
[4] John Hemming,Carlos Eugênio Marcondes de MouraOuro Vermelho:A Conquista dos Índios Brasileiros. S.l.: s.n..

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