repasso reflexão-trabalho que fiz em 2005 na época estava na graduação do curso de geografia.
Feito conjuntamente com Marcos Roberto Soares Monteiro e Michele Tomeo Pacheco.
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RESENHA: O DOUTOR PASCAL
No final do século XIX
ocorre um grande desenvolvimento científico que vem negar uma série de fatos já
consagrados tanto pela ciência, como pela sociedade. Muito dessas modificações
e inovações científicas surgiram para atender demandas de uma sociedade que
alicerçava as bases sociais e econômicas para o modo de produção capitalista.
Preocupados e diretamente
inseridos nestas discussões, surgem estudiosos que conseguem sintetizar o bojo
destas preocupações ou necessidades sociais e científicas. Entre eles podemos
apontar F. Ratzel,
V. de La Blache, A. Comte, E. Durkheim, C. Darwin, K. Marx, F. Engels, F. Nietchze, E. Zola, etc.
Emílio Zola (1840-1902)
escreve o romance “O Doutor Pascal” na perspectiva de tentar localizar e
estabelecer um retrato das discussões e as mudanças que estavam presentes na
sociedade francesa naquele momento.
O livro também possibilita
realizarmos uma leitura sobre a condição humana em uma sociedade que estava em
uma violenta mudança social, cultural, existencial, produtiva, material e
econômica. As mudanças do modo de produção modificaram o meio ambiente e o modo
de vida dos indivíduos desta sociedade.
Zola pode ser considerado
como um grande “cronista social” de sua época, por enxergar as visíveis e
perceptíveis mudanças na sociedade através da arte. Utiliza-se da forma poética
em um conturbado romance entre duas pessoas de idades muito discrepantes, mas
de pensamentos e idealismos muito próximos, sendo bastante contemporâneo.
A trama se desenvolve no
século XIX, entre 1872 e 1874, na cidade de Plassans e Souleiade localizada na França. Retrata o
convívio de uma família conturbada, a família Rougon e Macquart,
partindo do ponto de vista de Pascal, Clotilde e Martinha, que moram juntos.
O livro que enfoca,
principalmente, a relação do cientista, o Doutor Pascal, com a sua família e
amigos, o que nos possibilitou meditar sobre os signos sociais, culturais e
familiares desta época de extrema efervescência social, científica e produtiva.
O Doutor Pascal se dedica
a pesquisas sobre um licor “milagroso” e estudos sobre a hereditariedade,
baseado numa nova visão científica de medicina e sobre o ser humano. Com 58
anos de idade era um homem solitário e encontrará o amor de sua vida em sua
sobrinha Clotilde de 24 anos, que é filha de Saccard, um jornalista que vive na capital
francesa e pai omisso.
Clotilde é muito
influenciada pela avó Felicidade até o seu romance com Pascal, com quem terá um
filho, cujo pai não chegará a conhecer, pois morrerá de infarto. Um pouco antes
disso, após pressão da mãe de Pascal e pelo fato de não conseguir um filho com
Pascal, Clotilde
vai para Paris cuidar de um irmão doente e isto contribuirá para a decadência
física e de saúde de Pascal.
A Senhora Felicidade
Rougon, mãe de Pascal, é muito religiosa e tenta preservar as tradições da
família, contestando veementemente a visão científica defendida pelo seu filho.
Tínhamos constantes discussões entre Pascal e sua família, no que se refere aos
diferentes posicionamentos em relação à ciência, à religião e concepção de
mundo.
Esta indisposição mais
tarde vai resultar na destruição quase total dos manuscritos referentes aos
estudos do Doutor Pascal. Sua mãe junto com Martinha, a empregada da casa que
idolatrava Pascal, também muito religiosa, queima grande parte dos manuscritos
deixados por seu filho, sob o argumento de “purificar a casa do mal”. Podemos
ver esta incongruência existencial na passagem a seguir:
“E despejou a prateleira,
atirou a um e um os manuscritos para os braços da criada, que os punha em cima
da mesa, fazendo a menor brulha possível. De aí a pouco, estava a prateleira
despejada e ela saltou da cadeira.
-
Para o lume! Para o lume!... Acabaremos por nos apoderarmos dos outros, dos que
eu procuro... Para o lume! Para o lume! Estes processos! Até os bocadinhos de
papel do tamanho de uma unha, até as notas ilegíveis, para o lume! Para o lume!
Se queremos ter a certeza de matar o contágio do mal!
Ela
própria, fanática no seu ódio à verdade, na sua paixão em aniquilar o
testemunho da ciência rasgou a primeira página de um manuscrito, acendeu-o no
candeeiro e foi lançar esse brandão aceso para a grande chaminé (...).”
(ZOLA, S/D: 304 e 305).
Neste aniquilamento de
toda uma vida de trabalho mais se pareceu com as ações da “Santa Inquisição” da
Igreja Católica na Idade Média, onde se matava ou queimava as pessoas que não
eram cooptados por suas idéias de mundo. Clotilde consegue salvar uma parte
destes, ficando com os manuscritos sobre hereditariedade e doando outra parte
para Ramond, um jovem médico que era amigo de Pascal e antigo pretendente dela.
O livro coloca o embate
entre o “velho” e o “novo” pensamento. A família tradicional não aceita as
mudanças numa nova visão de sociedade trazida pela ciência, levando inclusive à
negação dos tradicionais valores religiosos.
Pascal aparece no início
como um cientista empírico preocupado em aliviar as dores dos doentes, onde
podemos verificar o aperfeiçoamento de seu método durante o livro. Inicialmente
aplica em seus pacientes as injeções de seu licor que começa a surtir efeito, e
mais tarde começa a injetar água, dizendo que teria o mesmo efeito no alívio
das dores, realizando algo como um “efeito placebo”.
Outra situação significativa
para a compreensão do texto, é quando mostra empenho em elaborar estudos sobre
a hereditariedade de sua família decadente, sobretudo para tentar
compreendê-la. Queria achar a “razão científica” das atitudes dos integrantes
de sua família (principalmente nele), ou seja, pesquisava na Árvore Genealógica
da família quem seria o responsável pela sua “loucura” e de que doença iria
morrer. Entretanto, encontra muita discrepância, confusão e inconsistência,
como pode ser visto na passagem a seguir:
“(...)
E estendeu a Árvore sobre a mesa, continuou a examiná-la por muito tempo, com
seu ar aterrado de interrogação, a pouco e pouco vencido e suplicante com as
faces molhadas de lágrima.
Porquê,
meu Deus! A Árvore não lhe queria responder, não lhe queria dizer qual o
antepassado a que estava preso, para poder inscrever o seu caso, na sua folha,
ao lado dos outros? Se ele devia enlouquecer, porque é que a Árvore lho não
dizia nitidamente, o que o teria acalmado, porque ele julgava sofrer somente da
incerteza? Mas as lágrimas obscureciam-lhe a vista, e continuava a olhar,
aniquilava-se naquela necessidade de saber, em que sua razão acabava por
vacilar. (...)”.
(ZOLA, S/D: 130).
Não terá sucesso nestes
estudos, porque entendemos ser muito difícil achar conclusivamente um motivo ou
determinismo hereditário ou biológico nas ações pessoais e sociais. Estas são,
sobretudo sociais, possuindo específicas determinações, inclusive hereditárias,
o que só demonstra que devemos considerar o amplo labor de Pascal sobre este
assunto.
Assim como boa parte dos
cientistas de sua época, Pascal de sua maneira consegue explicar muitos
aspectos da complexidade cotidiana e realiza muitas formulações de resistências
epistemológicas ao transcender a barreira metodológica de muitas ciências, que
embrionariamente se formavam nesta época.
Se tratados de forma
absoluta, ortodoxa e fechada, tanto a ciência como a religião pode ser
excludente, reproduzindo crenças cegas e visões formais de realidade.
Os estudos médicos e
científicos de Doutor Pascal (ou seriam não-científicos?), proporcionaram
questionamentos e argumentos para as pessoas que são avessas às rígidas
separações entre sujeitos e objetos, ou entre a ciência e a não-ciência (arte
ou transdisciplinariedade).
Entretanto, entendemos que
mesmos nos horizontes disciplinares podem-se defender concepções da
complexidade da vida. Epistemologicamente as Ciências possuem métodos e
fronteiras analíticas que não necessariamente são excludentes ou capazes de
conceber a complexidade do mundo, sendo muito importante a consideração deste
aspecto.
Longe de sermos niilistas,
podemos dizer que onde existe a eterna dúvida pode significar a eterna
esperança de novas situações. A defesa da vida é uma grande arma nesta
empreitada, como podemos ver a seguir:
“Em risco de
fazer monstros, era preciso criar, pois que, apesar dos doentes e dos doidos
que ela cria, não se cansa de criar, com a esperança, decerto, de que um dia
virão os sadios e os sensatos”.
(ZOLA, S/D: 326).
O nascimento do filho de
Pascal e de Clotilde aparece como sinal dos novos tempos para aquela família,
no qual podemos fazer um paralelo com a chegada de novos tempos também para a
ciência e para a humanidade.
BIBLIOGRAFIA
CARVALHO, Marcos
Bernardino de. “Geografia e Complexidade”. In: Silva, A. A. D.
& Galeno, A. (orgs.). “Geografia, ciência do complexus”. Porto
Alegre: Editora Sulina, 2004.
ZOLA, Emílio. “O
Doutor Pascal”, Lisboa: Livraria Editora Guimarães & Cia, s/d.
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