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segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

O funk ostentação, a “nova classe média” e a luta de classes no Brasil

Fonte:

http://capitalismoemdesencanto.wordpress.com/2014/02/20/o-funk-ostentacao-a-nova-classe-media-e-a-luta-de-classes-no-brasil/

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O funk ostentação, a “nova classe média” e a luta de classes no Brasil

Já faz algum tempo que o funk não é mais uma “grande descoberta” ou uma “grande novidade” a ser apreciada pela classe média e pela rede Globo com um sabor de exotismo. Ainda assim, não custa lembrar que desde o seu surgimento (em fins dos anos 1980) o funk era encarado pelos setores dominantes da sociedade de forma preconceituosa que contribuía para a criminalização de seus apreciadores, os funkeiros. A preocupação em coibir o consumo de drogas nos bailes e a prática do “corredor” (Lado A X Lado B), levou, em 1998, à formação da CPI do funk na ALERJ, com o objetivo de apurar a incitação à violência e o suposto envolvimento entre os donos das equipes de som e traficantes de drogas. Estudava-se a possibilidade de proibir a realização dos bailes. No entanto, essas e outras tentativas de disciplinar o funk e os funkeiros não impediram que o ritmo fosse aceito e reproduzido em massa para outros segmentos sociais.
Desde quando o ritmo se consolidou como uma manifestação cultural criada pela/para juventude da classe trabalhadora carioca (que habitava as periferias e as favelas do Grande Rio), o mercado, que envolvia apenas algumas equipes de som (e seus técnicos), alguns DJ`s e poucos Mc’s, cresceu imensamente e, hoje, envolve produtoras de videoclipes e emissoras de rádio e de televisão, por exemplo. Essa expansão mercadológica contribuiu para que o funk se nacionalizasse, ultrapassando os limites do Rio de Janeiro, entre o fim dos anos 1990 e o começo dos anos 2000. Até aí, o estado do Rio era praticamente o único centro criador e difusor de novas tendências estéticas. No entanto, a partir da segunda metade dos anos 2000, o funk também passou a ser produzido com fôlego nas periferias de São Paulo, de onde surgiu a última inovação estética, conhecida como ostentação.
Mc's do funk ostentação. Fonte: Google.
Mc’s do funk ostentação
Essa nova vertente chegou ao Rio em 2012 e, desde então, vem conquistando um espaço importante no cenário carioca, influenciando tanto a temática de suas letras, quanto o visual e o comportamento dos Mc’s. Partindo do princípio de que qualquer tipo de manifestação cultural seja fundamental para entender os valores, as contradições e os conflitos de qualquer sociedade, este texto tem como objetivo analisar essa nova estética do funk e tentar compreender de que forma as relações aí representadas se associam às questões que permeiam a sociedade brasileira.
Na primeira metade dos anos 1990, as letras do funk carioca abordavam temas como a desigualdade social, o racismo, a violência e a criminalização da pobreza. A batida (produzida em baterias eletrônicas) era diferente daquela que se ouvia em São Paulo com os Racionais, e o flow (o “encaixe” das rimas na batida) dos Mc’s cariocas era mais rápido e menos carregado, mas, apesar disso, o som que se produzia no Rio também era chamado de rap. Dessa época, datam o “Rap da Felicidade”, o “Rap do Silva” e o “Rap das Armas”, por exemplo. Nesse período, o Brasil vivia a consolidação do Neoliberalismo, momento em que a inflação elevada, os juros altos e o arrocho salarial aprofundaram as desigualdades sociais e contribuíram para a explosão da violência urbana – reforçada pela falida política de guerra às drogas, que criminaliza a pobreza. Num momento em que a classe trabalhadora tinha um poder de consumo muito baixo (limitando-se, praticamente, aos bens mais necessários) e poucas opções de lazer, os bailes funk realizados nos subúrbios e nas favelas cariocas eram um tipo de divertimento barato e interessante, pois as músicas eram dançantes e, ao mesmo tempo, falavam sobre uma realidade bastante próxima daquela vivida por esses jovens.
Com o sucesso dos bailes entre os jovens da classe trabalhadora, o funk começou a tocar nas emissoras de rádio, que passaram a reservar um horário exclusivo para o ritmo. Na segunda metade da década de 1990, com a influência do freestyle americano, o funk assumiu um caráter mais melódico e as letras passaram a falar, principalmente, de amor. O funk melody – como ficou conhecido – teve grande aceitação do público carioca e viabilizou a inserção do ritmo no mercado das grandes gravadoras, com o lançamento do álbum“Claudinho e Buchecha”, em 1996, pela Universal Music. A dupla de Mc’s participou de programas de TV de grande audiência, o que deu projeção nacional para suas músicas. A partir daí, abriu-se o caminho para que o funk passasse a ocupar um lugar cada vez mais importante na grande mídia e na indústria da cultura.
CD Claudinho e Buchecha. Fonte: Google.
Capa do CD Claudinho e Buchecha
No entanto, a partir de 1995, o mercado musical brasileiro passou a ser fortemente dominado pelo axé music, proveniente da Bahia. Com letras e coreografias extremamente sensualizadas, o axé batia recordes de vendas e tinha um espaço considerável na mídia. Por conta disso, o funk, que começava a se nacionalizar, acabou sendo deixado de lado pelas grandes gravadoras. O funk retornou para os limites das favelas cariocas e voltou a cantar os temas que faziam parte da realidade vivida por seus moradores. Os limites impostos à circulação do funk no circuito mainstream contribuíram para que um grande volume de produções circulasse quase que exclusivamente dentro das favelas – excetuando-se aquelas músicas que chegavam a tocar nas rádios. Isso acabou favorecendo o crescimento do estilo proibidão – que não tocava nas rádios oficiais porque exaltava as facções criminosas locais, porque radicalizava a sensualidade trazida pelo axé ou, simplesmente, por ser considerado muito violento.
Após a febre do axé, o funk foi redescoberto pela indústria cultural no início dos anos 2000 – dessa vez, com o Bonde do Tigrão. O ritmo retornava à grande mídia esbanjando sensualidade e duplo sentido em suas letras, o que soava ainda mais intenso com a introdução do som do tamborzão (um sample de som de atabaque ou de sua reprodução em beat box). O Bonde do Tigrão levou o funk de volta à TV, junto com outros artistas que seguiram pela mesma vertente. O funk passou a ser tocado em boates de todo o Brasil e a procura pelos shows dos Mc’s aumentou consideravelmente. Assim, o funk passou a ter uma distribuição mais regular e mais capilarizada para o resto do país, atingindo a uma parcela mais ampla da classe média.
Capa do CD do Bonde do Tigrão
Capa do CD do Bonde do Tigrão
Enquanto o funk se desenvolvia no Rio de Janeiro, em São Paulo o sucesso entre os jovens da periferia ficava por conta do rap. Durante os anos 2000, o rap americano – que era uma das principais referências para o rap paulista – adotou uma estética de ostentação da riqueza, com a exibição de carros e motocicletas de luxo, mulheres, bebidas caras e roupas de grife alcançados pelos rappers. Com a chegada do funk na capital paulista, os jovens que cresceram ouvindo Racionais Mc’s e que viam, agora, o novo comportamento P.I.M.P dos rappers americanos, acabaram criando uma nova tendência para o ritmo, combinando a sonoridade do funk carioca (tamborzão e flow, que já estavam presentes no funk da Baixada Santista) à estética da ostentação. A inspiração, segundo o Mc Boy do Charmes – um dos pioneiros do estilo –, também vinha dos Racionais, principalmente da música “Vida Loka (parte 2)”, na qual Mano Brown fala sobre como a vida deve ser mais confortável dentro de um carro importado.
Na segunda metade dos anos 2000, o funk partiu da Baixada Santista para a Zona Leste da cidade de São Paulo, de onde saíram muitos Mc’s importantes, tais como Mc LonBonde da JujuMc Daleste e Mc Guimê (que, atualmente, é o principal nome do funk paulista). Essa vertente já circulava pelas periferias de São Paulo e de outras grandes capitais – como Porto Alegre e Belo Horizonte –, quando despertou o interesse da grande mídia, após oassassinato do Mc Daleste e a onda dos rolezinhos. Vale lembrar que, antes disso, esses Mc’s já tinham um grande público e alguns já faziam mais de 50 shows por mês. Isso porque eles apostaram no lançamento de clipes no YouTube, gravados pela produtora KondZilla. Nos vídeos – que têm mais de um milhão de acessos –, os Mc’s aparecem ostentando os carros, as motos, as joias, as bebidas caras, o dinheiro, as roupas e os acessórios de grife e as mulheres que já conquistaram ou que ainda sonham em conquistar. No Rio, a estética da ostentação chegou em 2012 e já conta com a adesão de alguns Mc’s, como o Menor do Chapa, o Nego do Borel e a Pocahontas, que falam diretamente das marcas e grifes de sua preferência. Mesmo que a maioria dos Mc’s cariocas não tenha aderido a essa temática, ainda assim, a estética da ostentação está cada vez mais presente nos videoclipes gravados pela produtora Tom Produções. Paralelamente a isso, o funk de caráter reivindicatório continuou existindo, mas sem receber, no entanto, a mesma atenção da mídia e da indústria cultural.
Mc Guimê
Mc Guimê
O sucesso dessas músicas entre os jovens da classe trabalhadora e a reação de alguns setores da sociedade brasileira a essa nova estética envolvem questões de extrema importância para entendermos a dinâmica da luta de classes no Brasil, principalmente nessa última década. Em primeiro lugar, deve-se destacar que, desde 2002 (com a ascensão do PT ao governo federal), a classe trabalhadora teve seu poder de compra ampliado, decorrente do esforço do governo em fomentar a expansão do mercado interno, adotando políticas de valorização do salário mínimo, de caráter compensatório (Bolsa Família), de estímulo ao crédito, de controle da inflação e da relativa redução dos juros. Isso permitiu que uma parcela significativa da classe trabalhadora tivesse acesso a inúmeros bens e serviços, que antes sequer poderiam ser cobiçados como sonhos de consumo. O aumento da renda dos trabalhadores logo despertou o interesse das grandes corporações que atuam no mercado brasileiro. Muitas empresas encomendaram estudos sobre os hábitos de consumo daqueles que foram classificados como “nova classe média” – que, na verdade, nada mais é do que a antiga classe trabalhadora com o poder de compra ampliado, mas com a mesma dificuldade de acesso a outros elementos definidores de sua inserção social, como educação e assistência médica de qualidade. O efeito das propagandas agressivas (direcionadas especialmente para esse segmento social), a possibilidade de realizar os sonhos de consumo (há muito tempo reprimidos) e de ter acesso aos mesmos bens materiais que a classe média tradicional já ostentava – cuja falta lhes designava uma posição inferior na hierarquia social – também fizeram com que as famílias da classe trabalhadora tivessem acesso a tecnologias importantes como computadores, celulares e uma boa conexão à internet.
A partir desse cenário, passou a ser comum ouvir pessoas da classe média tradicional fazendo comentários recalcados a respeito dos hábitos de consumo daqueles que costumavam ser chamados de “baixa renda”. Muitas madames e muitos “cidadãos de bem” passaram a se incomodar com a perda da exclusividade no consumo de certos bens e serviços. Muitos se indignaram com a suposta falta de visão e de planejamento daqueles que, ao invés de investirem em seus estudos e na sua formação profissional, preferiam comprar um telefone celular de última geração, um carro ou uma roupa de marca. Essa mentalidade preconceituosa veio à tona com muita força no ano de 2013, quando os mesmos jovens das periferias de São Paulo que já curtiam o funk ostentação resolveram sair em grupo para dar um rolé nos shoppings mais próximos de suas comunidades. Mas a tentativa de levar seus modos de vida e seu comportamento para lugares tradicionalmente ocupados pela classe média, levou a grande imprensa a tratar do caso como uma questão policial, afirmando que se tratava de um arrastão (ainda que não tenha sido registrada nenhuma ocorrência de roubo ou de furto). Com a onda dos rolezinhos, o funk ostentação virou assunto midiático, mas foi abordado sob uma ótica preconceituosa, que corroborava a mentalidade elitista manifestada por muitas pessoas da classe média tradicional.
As músicas do Mc Gumiê como “Tá Patrão”“Plaquês de 100” e “Na Pista Eu Arraso” dão uma boa dimensão de como essa nova vertente do funk retrata os efeitos da fetichização da mercadoria associada ao aumento do poder de consumo da classe trabalhadora. Mas, o clipe do Mc Nego do Borel feito para a música “Diamante da Lama” é aquele que reúne, de forma mais complexa, as contradições sociais debatidas até aqui. Leno Maycon – o Nego – é um jovem morador da favela do Borel, localizada na Zona Norte do Rio, que começou a carreira dançando com o Mc Menor do Chapa, mas que logo resolveu se aventurar na vida de Mc, cantando músicas que, na versão proibida, faziam referência aos traficantes do Comando Vermelho, como “Cheguei no Pistão” e “O Brinquedo Não”. As versões lights dessas músicas tocaram nas rádios e fizeram muito sucesso, principalmente depois da parceria de Nego com o Bonde das Maravilhas. Daí para frente, suas músicas alcançaram um público mais amplo e ele acabou se enveredando pela estética da ostentação, como pode ser percebido nos clipes das músicas “Bonde dos Brabos” e “Os Caras do Momento”, de 2013. O interessante é que, mesmo com toda a ostentação, o discurso de suas músicas não deixa de afirmar o caráter efêmero e artificial do prazer proporcionado pela fruição desses bens, quando ele diz, por exemplo, que “no palco tem um moleque feio/Com o bolso cheio de dinheiro/Chamado de Leno Maycon/Conhecido como MC Nego” ou que “as mulheres que eu pego/São mulher do meu bolso/Faz amor comigo/Pede pra tirar foto com o meu ouro”. Em “Quero Usufruir”, ele afirma diretamente que seu sucesso e seus fãs são passageiros.
Mc Nego do Borel
Mc Nego do Borel
O clipe de “Diamante da Lama” foi lançado em janeiro desse ano – mais uma vez em parceria com a Tom Produções. Nesse clipe, Nego conta sua trajetória de vida, com o objetivo exaltar sua atual condição financeira. O título faz referência à letra de “Negro Drama”, música em que os Racionais Mc’s expressaram com visceralidade a opressão cotidiana sofrida pelos jovens negros moradores das periferias brasileiras – discriminados por sua cor e por sua condição social, mas que são, ao mesmo tempo, seduzidos pelas propagandas de um estilo de vida idolatrado e pelo exemplo relativamente exitoso daqueles que optaram pela vida no crime. O vídeo procura mostrar com humor e leveza essas mesmas contradições apontadas por Edy Rock e Mano Brown, mas, ao fazer isso partindo da lógica da ostentação, provoca uma sensação angustiante. No clipe, Nego assume sua origem humilde e as dificuldades que passou durante sua infância, quando não tinha nem a chuteira para tentar a sorte jogando futebol. Em seguida, ele aparece de branco, agradecendo a Deus por ter sido escolhido, entre muitos outros, para fazer sucesso – o que também pode ser entendido como uma forma de tentar se redimir pelos proibidões que cantou. Além de narrar as privações materiais por que passou, Nego também fala sobre ter sido rejeitado pelas meninas que cobiçava e que não lhe davam atenção, pelo fato de ser negro e pobre – e que, hoje, dançam ao som de suas músicas e se insinuam para ele. Depois, ele mostra como está bem de vida e cercado por tudo aquilo com que sempre sonhou, inclusive mulheres com “cabelo que voa”.
Como já foi dito, o funk ostentação revela a ânsia da classe trabalhadora de se sentir próxima, ainda que simbolicamente, do estilo de vida que sempre lhe foi vendido como ideal, mas que sempre lhe foi negado. Não restam dúvidas de que essa exaltação do consumo contribui para a fetichização da mercadoria e, como consequência disso, para a reprodução da lógica de funcionamento do sistema em que vivemos hoje. Mas não podemos ignorar que a exaltação do aumento do poder de consumo de quem, até pouco tempo, mal conseguia garantir o mínimo necessário a sua sobrevivência, também é uma forma encontrada pela classe trabalhadora de produzir juízos sobre seu lugar na sociedade. É claro que eu gostaria de ouvir letras de funk que falassem sobre a exploração de classe e que denunciassem as condições precárias em que vivem a maioria dos trabalhadores brasileiros, mas creio que seja contraditório exigir desses artistas um grau de conscientização social pré-determinado, sem que lhes seja oferecida a possibilidade dessa conscientização. Os preconceitos, as contradições sociais e as várias formas de opressão que aparecem no funk – de todas as tendências – refletem, apenas, aquilo que já está presente em todas as relações sociais do nosso cotidiano. Ignorar o funk não vai resolver. Não quero dizer, com isso, que devemos aceitar como natural a reprodução da ideologia dominante em suas letras. Mas acredito que a luta contra a hegemonia dominante não deve desprezar nenhuma via que ainda esteja em disputa e nem deve reproduzir a mesma opressão que está sendo combatida.

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