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domingo, 22 de novembro de 2015

OS ARQUETIPOS SOCIOCULTURAIS que CONSTITUEM o FENÔMENO DA GEOGRAFIA NA PAISAGEM NO FILME: VIDAS SECAS de NELSON PEREIRA dos SANTOS

repasso reflexão-trabalho que fiz em 2005 na época estava na graduação do curso de geografia.
Feito conjuntamente com Marcos Roberto Soares Monteiro.
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OS ARQUÉTIPOS SOCIOCULTURAIS QUE CONSTITUEM O FENÔMENO DA GEOGRAFIA NA PAISAGEM NO FILME: VIDAS SECAS DE  NELSON PEREIRA DOS SANTOS


INTRODUÇÃO

As linguagens artística ou científica, tais como a cinematográfica e a geográfica, proporcionam inúmeras possibilidades de interpretações da realidade de maneira subjetiva, ou seja, de acordo com os interesses políticos, econômicos ou culturais, os quais tornam-se latentes em Vidas Secas.
Neste sentido, a interpretação cinematográfica contida no filme Vidas Secas, realizado em 1963, tendo como referencial as práticas sociais de um lugar onde as pessoas encontram-se subsumidas à práticas e a relações sociais que expressam a “desumanização” dos indivíduos em sua essência.
Retrata poeticamente, “escrachadamente” e “realisticamente” questões antigas e que infelizmente ainda fazem parte no cotidiano do sertão nordestino brasileiro, demonstrando como a crueldade da sobrevivência dos “fortes sertanejos” na peleja local. De maneira brilhante e angustiante são relatadas relações sociais como o êxodo rural, a fome dos despadecidos, a problemática do latifúndio e o coronelisno. Muitos destes aspectos também podem ser visualizados nos filmes Deus e o Diabo na Terra do Sol, O Cangaceiro, O Pagador de Promessas e Morte e Vida Severina, considerados ícones do “cinema novo” brasileiro, por buscar ser o mais realista possível, além de transparecer as contradições sociais ou luta de classes, sob forte influência dos ideais de esquerda ou comunista que pairavam na época.
Linguagens ou formas de expressão de fatos reais ou “fictícios” através do recurso da imagem e do som, constroem uma identidade que está imbricamente relacionada com o processo de alteração da paisagem, a qual é caracterizada como um dos objetos de analise do geógrafo.
Portanto, este trabalho visa elucubrar, sobretudo, as contradições socioculturais verificadas no filme que é uma adaptação da obra literária Vidas Secas de Graciliano Ramos. Também buscaremos situá-la no tempo e no espaço, fazendo um paralelo entre o filme Vidas Secas, a ciência geográfica e o cinema.

A GEOGRAFICIDADE PRESENTE NA PAISAGEM CINEMATOGRÁFICA DE VIDAS SECAS

A realidade é uma totalidade, ou seja, ela é resultado de um bojo de relações sociais que é ditada em sua organização produtiva. Ela se expressa em fenômenos, os quais possuem uma dimensão aparente que pode ser desnudada pela leitura humana através das ciências e da arte.
Contudo, podemos conceber a aparência como o “início do conhecimento” e uma manifestação concreta da essência ou do conteúdo das coisas. A aparência materializa-se tanto nas leituras científicas formais ou incompletas, assim como nos objetos e fenômenos da realidade.
Podem ser compreendidas como exemplos fenomênicos da realidade, o espaço entendido aqui como território, assim como as relações sociais existentes, as quais são materializadas nas instituições, nas pessoas ou na produção subjetiva (arte e ciência). A paisagem é a expressão da dimensão aparente do território, assim como uma letra de música de um compositor popular ou uma representação cinematográfica podem servir para a compreensão das relações produtivas da sociedade.
Neste sentido verifica-se que:
“(...) temos de entender o conteúdo para podermos entender a forma e também admitir que ela, uma vez constituída, influencia tanto na própria forma, quanto no conteúdo”.
(PEREIRA, 2003: 11)
Seguindo as reflexões, percebemos nesta passagem de Florestan Fernandes, a relação da arte com a estrutura social:
“Há uma estreita dependência entre sociedade e cultura, entre estrutura social e vida intelectual (...), de modo que qualquer modificação ou transformação sofrida pela primeira, reflete-se nas esferas da segunda. Ora, a sociedade liberal-democrática do ocidente está em crise; ela passou ou está passando de seu estado de sociedade liberal-democrática de minorias para o de massas. Em conseqüência, os fatores sociais que agiram nessa transformação vão também agir sôbre a vida intelectual: a produção e a utilização (...) da cultura e as relações entre o autor e o público, que dependem estreitamente de certas condições sociais se transformam à medida que aquelas condições se modificam. Por isso, a vida intelectual também está ameaçada pelos dois princípios, mutuamente antagônicos, o liberal "laissez-faire" e a regulamentação, que lutam no campo econômico. Êle se arrisca a todos os perigos que decorrem do funcionamento sem nenhuma direção das sociedades democráticas de massas, que se tornam mais graves e agudos quando as formas liberais são substituídas por formas ditatoriais de regulamentação”.
(FERNANDES, Folha da Manhã, 1944).


Nesta perspectiva aglutinadora e hologeica, concebemos no filme uma concatenação de imagens que pode ser inicialmente identificada no “dialogo quase inexistente” ou rústico entre uma família de retirantes nordestinos ou na relação com a sociedade local. Temos como personagens principais esta família na figura de Fabiano (Pai), de Sinhá Vitória (Mãe), o menino mais novo, o menino mais velho e a cadela Baleia que possui a humanização como característica primordial.
               
A linguagem cinematográfica neste filme pode ser considerada como uma interpretação do real artisticamente, fundindo brilhantemente o “espaço interno” (dos personagens) com o “espaço externo” (lugar). Verificamos uma realidade miserável que infelizmente ainda se perpetua em alguns estados brasileiros, em especial no sertão nordestino. É perceptível algumas determinações sociais e produtivas impostos na família de retirantes, como no constante deslocamento territorial que realizam em busca de emprego ou de uma parca satisfação pessoal, cujo “sonho de consumo” era “ter uma cama de couro igual da do Tomás da Bolandeira”.
Este movimento de “êxodo rural” da família retirante é demonstrado tanto no começo quanto no final do filme, talvez querendo enfatizar a triste realidade dos tantos Fabianos, Josés, Marias ou Severinos que além de se assemelharem, perduram historicamente, apesar da luta que realizam para superar estas contradições ou situações sociais.   
A miséria cotidiana dos sertanejos (Ver Anexo Foto)  é perceptível em algumas situações dramáticas, os quais muitas vezes não se acomodavam com sua situação e buscavam meios paralelos de sobrevivência entendendo que “viver no mato não é vida de gente”. 
       Um filme pode ser encarado como construtor de uma paisagem ou de uma versão do real, tanto a partir do ponto de vista da subjetividade de quem o criou, quanto de quem o vê, ou seja, constroem-se várias leituras geográficas do real, através da absorção conjunta da imagem, do som e da fotografia, cujo sentido pode ser evidenciado na passagem a seguir:

“Ao olhar uma paisagem, por exemplo, o que de imediato vem à nossa percepção é a pluralidade cultural e a individualidade do mundo percebido. Todavia, a transposição do supra-sensível faz-nos ultrapassar a imediatez do múltiplo individual com que este se apresenta, colocando-nos diante dele como uma totalidade estruturalmente articulada e integrada. O que acontece é que a Ciência faz este movimento de totalização pela via do conceito e a arte pelo caminho mais livre dos símbolos e da significação, enfatizando o sentido e o significado. Nem por isto entretanto um expressa com mais correção a captação do real que a outra.”
(MOREIRA, 2004: 189).

Esta passagem reforça a importância de utilizarmos a arte em nossas analises na realidade, sem querer desqualificar ou reduzir sua importância. Verifica-se que existe uma linha muito pequena que pode diferenciar a arte da ciência.
Entende-se que o filme possui uma dimensão geográfica ou geograficidade por ter uma forma ou conformação territorial, que é perceptível aparentemente nas paisagens, e também na abrangência escalar das relações sociais específicas.
Porquanto, esta geograficidade pode ser expandida se concebermos, visualizarmos a dimensão territorial das relações sociais e produtivas dos personagens do filme. Neste sentido, o espaço está subsumido à existência, demonstrando que os usos (forma) definem o conteúdo e são imprescindíveis no desvendamento do conteúdo.
        Verifica-se diante desta constatação que os sertanejos estão intrinsecamente ligados ao lugar onde vivem, tendo em vista que os lugares são visualizados através dos homens e que o homem só o é por ser o “homem-no-mundo”. Longe de realizar leituras fenomenológicas desprendidas da totalidade social, entende-se que para as coisas acontecerem, estas tem de ocorrer em lugares, transformando as coisas também em lugares. Esta passagem de Moreira é bem significativa:


“A relação entre Geografia, História e Letras não é só possível, como de fato existe. E o que embasa esta relação é a categoria do espaço.
Normalmente se diz que para entendermos uma obra precisamos contextualizá-la no tempo. Mas não se fala em inseri-la no contexto do espaço. Habitualmente, o espaço fica abstraído da contextualização de uma obra. E, no entanto, a contextualização do tempo só é possível quando a contextualidade no espaço fica estabelecida. Porque não existe tempo fora do espaço, e espaço fora do tempo, uma vez que o real é espaço-temporal”.
Não há romance que possa falar da problemática humana – e até prova em contrário a problemática humana é o tema tanto da Literatura como da História e da Geografia –, fora da sua contextualidade espaço temporal”.
(MOREIRA, 2004: 187).
            Esta instigante passagem ressalta a validade da relação existente entre arte e geografia, mas também demonstra a importância de se ter uma perspectiva territorial das coisas, formando algo compreendido como um “tempo espacial” ou um “materialismo histórico-geográfico dialético” como sistema filosófico. Tais afirmações buscam passar longe de se realizar um “determinismo geográfico”, estar impondo a leitura geográfica para outras linguagens ou mesmo conceber a realidade como inata. Entendemos que novas perspectivas analíticas e científicas possam estar sendo disponibilizadas, além de colocar a compreensão de que existem determinações na realidade e uma objetividade que são de suma importância para a compreensão do real.
              O filme Vidas Secas nos permite compreender minimamente as relações desiguais da sociedade contemporânea e urbana, criando uma “cegueira branca”, fato problematizado por José Saramago no livro Ensaio Sobre a Cegueira. Também retratada no filme, vemos neste livro uma cegueira social abarcando uma sociedade desumanizada e animalizada.
          Neste sentido, o processo de concepção de uma paisagem e de uma geografia existentes na obra Vidas Secas, nos possibilita evidenciar fatos que ainda são presentes na sociedade contemporânea, tais como o latifúndio e do trabalho escravo vivenciado em algumas regiões, como no norte, no nordeste e no Centro Oeste brasileiro, ou seja, num olhar autodiegético, que por sua vez é transmitida através da linguagem cinematográfica de Nelson Pereira dos Santos.

RELAÇÕES SOCIAIS E PRODUTIVAS DOS PERSONAGENS NO MEIO AMBIENTE

“E o sertão continuaria a mandar para cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, Sinhá Vitória e os dois meninos” (Graciliano Ramos).
O “meio ambiente” aqui é compreendido como algo mais amplo, ou seja, inserido na totalidade das relações mundanas, sendo o ser humano elemento integrante com seus usos no espaço, muitas vezes preponderante em relações aos demais seres e cruel com outros de sua espécie.
O meio ambiente é fruto das relações naturais e sociais subsumidos à lógica perversa do modo de produção capitalista, mas também é determinante nas ações e nos usos mundanos e humanos. As relações sociais que criam a realidade, ora no meio ambiente ou numa região, podem ser mais bem compreendidas no trecho a seguir:
“Uma ‘região’ seria, em suma, o espaço onde se imbricam, dialeticamente uma forma especial de reprodução do capital, e por conseqüência uma forma especial da luta de classes, onde o econômico e o político se fusionam e assumem uma forma especial de aparecer no produto social e nos pressupostos da reposição. Tal especificidade é passível de determinação rigorosa, no contexto metodológico e teórico esposado por esta investigação. É possível reconhecer a existência de espaço econômico – político – sociais onde, por exemplo, o capital comercial comanda as leis de reprodução sem no entanto penetrar propriamente na produção; tal região se diferenciaria de uma outra onde o capital penetrou no próprio sistema produtivo, onde seria o capital industrial – em sentido lato, pois a agricultura capitalista também é uma industria – o responsável pela reprodução do sistema; assim, sucessivamente, as diversa formas de reprodução do capital conformariam em ‘regiões’ distintas.
(OLIVEIRA, 1981: 29).
Diversas, situações presentes no filme nos remetem tecer reflexões e compará-las com as problemáticas contemporâneas da sociedade brasileira, tais como a concentração de renda, as contradições na vida desumana dos sertanejos, a seca no semi-árido de um povo sem perspectiva de vida e a disparidade social que ainda é muito discrepante.
A vida sofrida dos sertanejos contrasta-se com a da família do “coronel” ou dos ricos da cidade, tendo na riqueza dos segundos advindos da miséria dos primeiros. Entretanto, não havia distinção de classes sociais na “brutalidade” dos seres humanos neste ambiente “hostil”, que penavam em se comunicar diretamente.
Interessante verificar dois aspectos dos personagens do filme, pois, além da humanização da cadela Baleia temos uma ausência de nomes nos filhos de Fabiano e Sinhá Vitória. Talvez Graciliano Ramos queira ressaltar poeticamente a grave situação de estarmos numa terra onde os seres humanos são tratados progressivamente como “coisas” ou mercadorias, utilizando-se da figura e da ausência de nome das crianças como metáfora desta trágica e cômica realidade.
Neste lugar há um processo de “desumanização” parecida com a ocorrida no livro “Ensaio Sobre a Cegueira” de José Saramago, onde os poucos sinais de humanidade são “desmanchados no ar” hipoteticamente e ironicamente pelas desventuras e imposições do ambiente.
Podemos apontar como ”brechas sociais” ou “suspiros de relações afetivas”: a curiosidade e a ingenuidade das crianças que vão gradativamente perdendo suas inocências; a humanização da cadela Baleia que muitas vezes realiza função de pai e ao mesmo tempo de mãe das crianças; o fato de Sinhá Vitória ser a única semi-alfabetizada e capaz de realizar contas complexas na família; o perdão de Fabiano ao soldado que o espancou egoístamente; além das manifestações culturais e religiosas dos pobres nos festejos e rezas.
Evidencia-se a ação coercitiva do Estado burguês ou do intitulado “governo” na figura do soldado amarelo, dos coronéis e dos funcionários da prefeitura com os pobres moradores do lugar vivenciado. O personagem Fabiano tenta achar outras fontes da parca renda familiar sem ser na labuta de vaqueiro, ao tentar vender “pedaços de porco” ambulantemente nas ruas da cidade, mas é imediatamente impedido por um funcionário da prefeitura, que lhe diz estar fazendo uma prática ilegal e deveria “pagar o imposto de venda”, fator impeditivo para a prática comercial de Fabiano.

Este trecho retrata sinteticamente a triste e cruel sobrevivência da família neste “ambiente hostil e desperançoso”:
“Eles chegaram numa fazenda, instalaram-se numa casinha abandonada, até que o dono das terras vem despejá-los. Mas Fabiano convence-o de que é bom vaqueiro, que pode trabalhar para ele. E, pouco a pouco, começam tempos de prosperidade: já podem comer melhor, até comprar roupas novas para ir à procissão na cidade. Mas o massacre vem de toda a parte. O fazendeiro, a pretexto de cobrar juros, paga muito menos do que deve a Fabiano.
Quando o vaqueiro tenta vender um pedaço de carne, logo surge funcionário da prefeitura querendo lhe cobrar imposto, apoiado pelo Soldado Amarelo.”
(SALEM, 1987: 179).
As relações climáticas em conjunto com as práticas de poder dos poderosos locais impõem determinações no modo de vida de todos os habitantes locais. A indústria da seca está escrachada neste filme. Também verificamos nesta conjuntura o parco trabalho disponível no sertão, sendo que o trabalho temporário e sazonal torna-se imprescindíveis nas relações produtivas.
Não podemos deixar de falar da “indústria da seca” que os poderosos economicamente e politicamente impõem nas relações sociais. A região sertaneja é muita rica culturalmente, turisticamente e também produtivamente, sendo possível realizar outras atividades econômicas sem ser de monocultura agrícola ou de criação extensiva de gado de corte.
Entretanto, os poderosos locais não deixam isso acontecer, pois é mais viável manter o povo na miséria e dependente das por venturas climáticas e dos coronéis “painhos” locais, em contrapartida da vida de luxo e riquezas dos patrões. Não foi à toa que Fabiano foi impedido pelos funcionários da prefeitura de criar uma atividade produtiva “alternativa”, sob o “perigo” de subverter a (i)lógica produtiva e social.
Quando há uma época de chuvas na região há uma grande procura de empregos e quando há estiagem principiam-se as demissões, fato ocorrido com a família de Fabiano que foi demitida do emprego sob a desculpa de “um bezerro sumido” e das “dívidas inacabáveis”, tendo de se jogar “estrada à fora”.
É triste e porque não dizer cômico a visualização da condição humana nos festejos culturais e religiosos da população pobre, que reverenciam os coronéis e o prefeito da cidade o tempo todo, ou seja, já não bastavam explorá-los cotidianamente e ainda eram “homenageados afetivamente”, conforme podemos presenciar ao longo do filme. Além disso, estes festejos possibilitavam que a família de Fabiano tomasse uma “consciência temporária” de sua situação, pois havia pessoas mais pobres e desfalecidas do que eles.
Parafraseando Euclides da Cunha no brilhante livro “Os Sertões”, podemos dizer que “o sertanejo é forte” apesar das vicissitudes sofridas. Mas, tudo tem seu limite! Apesar desta constatação, o poder coercitivo dos poderosos faz com que os pobres sertanejos aceitem os absurdos, escolhendo desta vez uma “dialética da sobrevivência” e não o orgulho pessoal ou a realização das individualidades que são cada vez mais impossibilitadas.
Por este motivo que Fabiano tem de aceitar o pagamento de seu salário em menor quantia “por causa dos juros” e ser demitido pelo patrão. Parafraseando o que disse Sinhá Vitória ao menino mais velho, podemos dizer que o “inferno é aqui e agora”, pois este seria “o lugar aonde vai os condenados”, “sendo muito quente”, o qual se assemelha ao sertão.
O inferno do retirante está presente a todo momento, o que nos permite ponderar, a respeito de questões ainda presentes na sociedade contemporânea, tais como a falta de oportunidade, quer na saúde ou na educação e assim transformando a vida e o futuro dos Severinos numa verdadeira utopia, devido ao fato deles nunca concretizarem-se no sistema capitalista, conforme nos atenta Sinhá Vitoria, no final do filme de forma trandisciplinar como evidenciamos na seguinte composição:
“SECO
PAREÇO UM ENXUTO LEITO DE RIO
SEM CHUVA
NEM VEGETAÇÃO
SECO
IGUAL A CARNE SECA
FRUTA SECA
UM SOM SECO
SECO
SEM BABADOS
DIRETO
DISPOJADO
INFORMAÇÃO SECA
COMO UM CANTO
SEM ACOMPANHAMENTO
 COM A GOELA SECA
SECO
BATENDO NA TERRA
BUSCANDO ALGO
QUE NÃO SEJA SECO”
(FREJAT & SALOMÃO, 1990).
A música expressada acima nos faz ponderar a respeito de questões que ainda estão presentes no cotidiano atual, que por sua vez é promovido, ora pela industria da seca no nordeste brasileiro onde a vida segue seu ritmo em meio a pobreza sociocultural ou socioeconomica, as quais são retratadas tanto no filme Vidas Secas de Nelson Pereira dos Santos quanto pela letra: Seco composta por Roberto Frejat e Jorge Salomão em que a vida prossegue de maneira banalizada, ou seja, “Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.

A PERSPECTIVA TRANSDISCIPLINAR DO FILME VIDAS SECAS

      O dialogo transdisciplinar do filme fica perceptível na veracidade e na transposição de uma obra literária para o contexto cinematográfico, nos possibilitando analisar questões latentes, como o movimento da imagem, da fotografia e dos personagens formando identidades, ora pelo posicionamento dos atores, os quais favorecem uma leitura uma “realidade momentânea”, ou seja, das vicissitudes sociais e econômicas regionalizadas.
           O diretor Nelson Pereira dos Santos faz uma magistral leitura da obra Vidas Secas, utilizando-se do olhar cinematográfico. Tanto, no livro como no filme demonstram uma “realidade”, alicerçada numa perspectiva subjetiva retratando fatos que ainda se perpetuam na sociedade brasileira, como a problemática do latifúndio, da miséria, do fluxo migratório e da idéia de “Eldorado” construída no imaginário da população nordestina como se os grandes centros urbanos fossem verdadeiros paraísos.
A gênese cinematográfica brasileira é formada, quer pelo olhar do diretor com a câmara objetiva, quer pelo olhar do personagem, ou seja, numa perspectiva subjetivista, o qual absorve características do neo-realismo.
O cinema neo-realista e o Cinema Novo Brasileiro têm como marca registrada a lentidão entre uma imagem e outra, fato que é negada pela indústria cinematográfica “hollywoodiana”, que se pauta nos diálogos rápidos e superficiais. Podemos visualizar este aspecto quando Fabiano se depara com o Soldado Amarelo no matagal e o fica encarando por minutos. Além do mais, a exposição das disparidades sócio-culturais identificadas pelo cinema-novo brasileiro, pode ser vista como uma antítese ao cinema Block Buster, ou seja, a produção de cunho comercial, o qual pode ser observado nas grandes produções hollywoodianas:

“No Brasil, esses filmes e idéias encontram terrenos particularmente receptivos, fortalecendo as posições de um grupo integrado, entre, outros, por Nelson Pereira dos Santos, Alex Viany, Roberto dos Santos, Walter G. Durst, que procuravam encaminhar-se para produções abaixo do custo numa situação particularmente adversa à produção cinematográfica, que se opunham ao cinema de estúdio e ao que se julgava ser hollywoodiano no Brasil, a Vera Cruz (1949-54), que procuravam uma estética e temáticas expressivas da situação de subdesenvolvimento do país, um cinema voltado para a questão social e os oprimidos e capaz de fazer uma crítica desse sistema social. O Neo-Realismo e o aproveitamento ideológico que foi feito dele estão presentes em filmes Rio, Quarenta graus (1955), de Nelson Pereira, e O Grande Momento (1958) de R. Santos.”
(BERNARDET, 1981: 95).
       O trecho mencionado nos permite elucubar não apenas do ponto de vista estético praticado pelo cinema hollywoodiano, o qual seguia caminhos opostos aos de filmes produzidos nos “países em desenvolvimento”. Em Vidas Secas a temática é voltada para as problemáticas sociais existentes na sociedade capitalista explicitadas nos personagens Fabiano, Sinhá Vitoria, Menino mais Velho, Menino mais Novo, Soldado Amarelo, Tomás da Bolandeira, do arrendatário das terras (patrão de Fabiano) e da cadela Baleia.
        A estética presente nestes filmes “neo-realistas” ou de “cinema novo” pode ser considerada revolucionária, por buscar denunciar as relações contraditórias e de classes sociais do ambiente retratado. Este movimento cinematográfico e social não era presente somente no Brasil, podendo ser visualizado no precursor cinema neo-realista italiano que teve início nos idos da década de 1945 com filmes de Federico Fellini e se expandiu para outros diretores de variados países.
        O intitulado “cinema novo” realizado no Brasil dos anos 60 teve forte influencia do neo-realismo, que tinha como ferramenta expor as situações cotidianas vivenciadas pela sociedade desigual, utilizando-se do mínimo de recursos e “profissionalismo”.
       Estes estavam situados numa época onde era muito forte o ideal socialista. A grande preocupação era a construção de uma cultura nacional popular que visasse à transformação do povo segmentado. Entendiam "povo" como a camada subalterna da sociedade, a classe trabalhadora, a classe revolucionária, responsável pela transformação da sociedade, pela insurreição do novo. Era fruto de um projeto político revolucionário, onde a “cultura popular revolucionária” assim o era por ser uma cultura dirigida ao povo e também por ter como objetivo a transformação da sociedade.
        Os assuntos abordados nos levaram a seguinte indagação: O que pode ser tido como real na arte cinematográfica? Existe uma realidade?
        Para responder a essa indagação é necessário compreender a complexidade contida no viés subjetivo-geográfico em Vidas Secas e nas produções artísticas produzidas no Brasil a partir da Segunda metade da década de 40 como o advento da renovação do cinema na Itália com a corrente do neo-realismo, conforme a seguinte passagem:
“O início desse movimento de renovação que se dá ao nível da temática, da linguagem, das preocupações sociais e das relações com o público, pode ser datado de 1945, quando começa o neo–realismo italiano. A Itália que, cinematograficamente, fora conhecida pelos melodramas, suas divas dos anos 20 e 30, suas superproduções bíblicas, estava saindo do fascismo mussoliano, da monarquia e da guerra, destroçada. Sobre as ruínas, enquanto paulatinamente se reergue um cinema comercial, desenvolve-se um cinema que cineastas e críticos vinham preparando clandestinamente nos últimos anos do fascismo. Realizam filmes voltados para a situação Italiana, rural e urbana, do pós-guerra. Despojam-se enredos, personagens, cenografia, de todo o aparato imposto pelo cinema de ficção tradicional proletários de classe média A rua dos ambientes naturais substituem os estúdios. Atores pouco conhecidos ou até não profissionais aparecem no lugar de vedetes célebres. A linguagem simplifica-se, procurando captar este cotidiano e tentando ficar sempre apegada aos personagens e as suas reações difíceis situações cotidianas. Essas posturas estéticas levam a produções executadas como mínimo de recursos, única solução viável na penúria em que se encontrava a Itália.”
(BERNARDET, 1981: 92).
          O presente trecho evidencia a linguagem empregada pela corrente do neo-realismo italiano fazendo um dialogo transdisciplinar com assuntos da sociedade, tais como o fascismo e o desemprego. Destacam-se alguns clássicos do cinema italiano, como no Ladrão de Bicicleta que retrata a situação da Itália logo após a Segunda Guerra Mundial e também em filmes brasileiros como Morte e Vida Severina, Deus e o Diabo na Terra do Sol e em especial Vidas Secas.
           Algumas dessas práticas apresentadas no filme infelizmente ainda são visíveis na sociedade contemporânea, tais como a questão do latifundiário, a escravidão por divida exercidas pelos grandes latifundiários e pelas mineradoras clandestinas, a grilagem das terras e por último medidas de efeito paliativo.
           Ainda hoje nos deparamos, com tais práticas que servem de fonte de inspiração, tanto no teatro como no cinema contemporâneo, como maneira de manifestar as contradições existentes: “Tudo o que é sólido se dissolve no ar, tudo o que é sagrado é profanado, e os homens são forçados a enfrentar com sentidos mais dispersos as verdadeiras condições da suas relações com os outros homens”, ou seja, esses fatos nos são apresentados como uma dentre as inúmeras interpretações de uma determinada realidade, seja na perspectiva científica ou artística.  

CONSIDERAÇÕES FINAIS

       Os fatos discorridos nos fazem refletir sobre a possibilidade de um estudo geográfico sob a ótica da linguagem cinematográfica constituindo uma paisagem mesmo que seja no plano subliminar ao reforçar um discurso político-ideológico, ora na realidade constatada pelo cinema presente no enredo, na dramatização dos personagens, na localização dos personagens e na sonoplastia.
         Apesar de parecer comodista com o governo, entendemos que quando Fabiano teve a humildade em não matar o soldado amarelo no matagal, além dele estar mergulhado nesta lógica de respeito à autoridade do Governo, recupera instantaneamente a humanidade que lhe é negado cotidianamente pelas vicissitudes do ambiente. Longe de propormos que devemos negar por completo a autoridade do governo, ou mesmo incitar que se matem todos os representantes do governo, cremos ressaltar a visualização da triste condição humana para que consigamos superá-la cotidianamente e coletivamente.
         É injustificável que ainda temos seres vivos como no (caso da cadela Baleia) e dos retirantes colocados no limite da sua sobrevivência, os quais são elevados a uma condição subumana ao morrerem de fome e das demais chagas sociais propiciadas, quer desigualdade social, quer pela concentração de renda proveniente de práticas desleais e desumanas promovidas e alimentadas pelo sistema capitalista.  A “eutanásia” da cadela Baleia é um dos pontos mais críticos do filme, pois não resiste e tomba por tudo que tem de passar conjuntamente com “sua família”.
       Lutamos e acreditamos que aquela visão rápida e romantizada do mundo em que a cadela Baleia tem nos últimos segundos de vida podem e serão atingidos através de muita luta e utopias.
          Queremos passar longe dessa idéia de participação no que é possível, ou seja, reivindicar apenas o possível (outromundismo ou altermundialismo), pois incapacita acreditar que é permitido mover corações, mentes para a transformação radical das bases econômicas, políticas e sociais do nosso mundo, não acreditando na humanidade.
        "Sonhar é preciso!", já disse o personagens dos quadrinhos "Sandman". Parodiando Vladimir Lênin em Que Fazer? :

“É preciso sonhar, mas com a condição de crer em nosso sonho. De observar com atenção a vida real, de confrontar a observação com nosso sonho, de realizar escrupulosamente nossas fantasias. Sonhos, acredite neles”.

         O sonho é nesse caso o patrono da ciência e o que move a realidade. Sonhamos e transformamos os sonhos em realidade pela luta. Não queremos ser emociotivos muito menos piegas. Queremos demonstrar que temos de ir além da indignação com a visualização das contradições sociais e que devemos nos organizar coletivamente e mudar esta realidade. Não podemos afirmar se utilizaremos a ciência do socialismo para que as pessoas se organizem para lutar, mas temos de ir além do que nos é imposto.

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THEODOR, Adorno. Indústria  Cultural e Sociedade, 2ª  edição, São Paulo, Editora Paz e Terra, 2002, pp. 119.
  
DISCOGRAFIA CONSULTADA

BUARQUE, Chico. TRILHA SONORA PARA O FILME: MORTE E VIDA SEVERINA, 1966.
BUARQUE, Chico. PARATODOS, 1993.
ENCANTADO, Cordel do Fogo. CORDEL DO FOGO ENCANTADO, 2001.
GUEDES, Beto. THE ESSENCIAL, 2003.
MONTE, Marisa. COR DE ROSA E CARVÃO, 1993.
NAÇÃO Zumbi, Chico Science &. DA LAMA AO CAOS, 1995.
RAMALHO, Zé. 20 ANOS ANTOLOGIA ACÚSTICA, 1998.
TITÃS, Õ BLÉSQ BLOM, 1989.
URBANA, Legião. QUE PAÍS É ESTE?, 1987.
VERMELHO, Barão. NA CALADA DA NOITE, 1990.

FILMOGRAFIA CONSULTADA

AVANCINI, Walter. Morte e Vida Severina, 1977.
GUERRA, Ruy. Os Fuzis, 1964.
GLAUBER, Rocha. Deus e o Diabo na Terra do Sol, 1960.
SANTOS, Nelson Pereira dos. Vidas Secas, 1963.
SASAHARA, Aline & MENDONÇA Luisa Maria. Raiz Forte, 2001.


SITES CONSULTADOS

http://www.achegas.net/numero/nove/pedro_semonard_09.htm
http://www.dhnet.org.br/desejos/textos/glauber.htm
http://www.cinemanet.com.br/cinemanovo.asp
http://divirta-se.correioweb.com.br/videos.htm?codigo=20
http://www.geocities.com/hollywood/agency/8041/nps0.html
geocieties.yahoo.com.br/marisamonte.br/discografia.htm–7k




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