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domingo, 22 de novembro de 2015

RESENHA Livro: O DOUTOR PASCAL

repasso reflexão-trabalho que fiz em 2005 na época estava na graduação do curso de geografia.


Feito conjuntamente com Marcos Roberto Soares Monteiro e Michele Tomeo Pacheco.


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RESENHA: O DOUTOR PASCAL

No final do século XIX ocorre um grande desenvolvimento científico que vem negar uma série de fatos já consagrados tanto pela ciência, como pela sociedade. Muito dessas modificações e inovações científicas surgiram para atender demandas de uma sociedade que alicerçava as bases sociais e econômicas para o modo de produção capitalista.
Preocupados e diretamente inseridos nestas discussões, surgem estudiosos que conseguem sintetizar o bojo destas preocupações ou necessidades sociais e científicas. Entre eles podemos apontar F. Ratzel, V. de La Blache, A. Comte, E. Durkheim, C. Darwin, K. Marx, F. Engels, F. Nietchze, E. Zola, etc.
Emílio Zola (1840-1902) escreve o romance “O Doutor Pascal” na perspectiva de tentar localizar e estabelecer um retrato das discussões e as mudanças que estavam presentes na sociedade francesa naquele momento.
O livro também possibilita realizarmos uma leitura sobre a condição humana em uma sociedade que estava em uma violenta mudança social, cultural, existencial, produtiva, material e econômica. As mudanças do modo de produção modificaram o meio ambiente e o modo de vida dos indivíduos desta sociedade.
Zola pode ser considerado como um grande “cronista social” de sua época, por enxergar as visíveis e perceptíveis mudanças na sociedade através da arte. Utiliza-se da forma poética em um conturbado romance entre duas pessoas de idades muito discrepantes, mas de pensamentos e idealismos muito próximos, sendo bastante contemporâneo.
A trama se desenvolve no século XIX, entre 1872 e 1874, na cidade de Plassans e Souleiade localizada na França. Retrata o convívio de uma família conturbada, a família Rougon e Macquart, partindo do ponto de vista de Pascal, Clotilde e Martinha, que moram juntos.
O livro que enfoca, principalmente, a relação do cientista, o Doutor Pascal, com a sua família e amigos, o que nos possibilitou meditar sobre os signos sociais, culturais e familiares desta época de extrema efervescência social, científica e produtiva.
O Doutor Pascal se dedica a pesquisas sobre um licor “milagroso” e estudos sobre a hereditariedade, baseado numa nova visão científica de medicina e sobre o ser humano. Com 58 anos de idade era um homem solitário e encontrará o amor de sua vida em sua sobrinha Clotilde de 24 anos, que é filha de Saccard, um jornalista que vive na capital francesa e pai omisso.
Clotilde é muito influenciada pela avó Felicidade até o seu romance com Pascal, com quem terá um filho, cujo pai não chegará a conhecer, pois morrerá de infarto. Um pouco antes disso, após pressão da mãe de Pascal e pelo fato de não conseguir um filho com Pascal, Clotilde vai para Paris cuidar de um irmão doente e isto contribuirá para a decadência física e de saúde de Pascal.
A Senhora Felicidade Rougon, mãe de Pascal, é muito religiosa e tenta preservar as tradições da família, contestando veementemente a visão científica defendida pelo seu filho. Tínhamos constantes discussões entre Pascal e sua família, no que se refere aos diferentes posicionamentos em relação à ciência, à religião e concepção de mundo.
Esta indisposição mais tarde vai resultar na destruição quase total dos manuscritos referentes aos estudos do Doutor Pascal. Sua mãe junto com Martinha, a empregada da casa que idolatrava Pascal, também muito religiosa, queima grande parte dos manuscritos deixados por seu filho, sob o argumento de “purificar a casa do mal”. Podemos ver esta incongruência existencial na passagem a seguir:

 “E despejou a prateleira, atirou a um e um os manuscritos para os braços da criada, que os punha em cima da mesa, fazendo a menor brulha possível. De aí a pouco, estava a prateleira despejada e ela saltou da cadeira.
- Para o lume! Para o lume!... Acabaremos por nos apoderarmos dos outros, dos que eu procuro... Para o lume! Para o lume! Estes processos! Até os bocadinhos de papel do tamanho de uma unha, até as notas ilegíveis, para o lume! Para o lume! Se queremos ter a certeza de matar o contágio do mal!
Ela própria, fanática no seu ódio à verdade, na sua paixão em aniquilar o testemunho da ciência rasgou a primeira página de um manuscrito, acendeu-o no candeeiro e foi lançar esse brandão aceso para a grande chaminé (...).”
(ZOLA, S/D: 304 e 305).

Neste aniquilamento de toda uma vida de trabalho mais se pareceu com as ações da “Santa Inquisição” da Igreja Católica na Idade Média, onde se matava ou queimava as pessoas que não eram cooptados por suas idéias de mundo. Clotilde consegue salvar uma parte destes, ficando com os manuscritos sobre hereditariedade e doando outra parte para Ramond, um jovem médico que era amigo de Pascal e antigo pretendente dela.
O livro coloca o embate entre o “velho” e o “novo” pensamento. A família tradicional não aceita as mudanças numa nova visão de sociedade trazida pela ciência, levando inclusive à negação dos tradicionais valores religiosos.
Pascal aparece no início como um cientista empírico preocupado em aliviar as dores dos doentes, onde podemos verificar o aperfeiçoamento de seu método durante o livro. Inicialmente aplica em seus pacientes as injeções de seu licor que começa a surtir efeito, e mais tarde começa a injetar água, dizendo que teria o mesmo efeito no alívio das dores, realizando algo como um “efeito placebo”.
Outra situação significativa para a compreensão do texto, é quando mostra empenho em elaborar estudos sobre a hereditariedade de sua família decadente, sobretudo para tentar compreendê-la. Queria achar a “razão científica” das atitudes dos integrantes de sua família (principalmente nele), ou seja, pesquisava na Árvore Genealógica da família quem seria o responsável pela sua “loucura” e de que doença iria morrer. Entretanto, encontra muita discrepância, confusão e inconsistência, como pode ser visto na passagem a seguir:

“(...) E estendeu a Árvore sobre a mesa, continuou a examiná-la por muito tempo, com seu ar aterrado de interrogação, a pouco e pouco vencido e suplicante com as faces molhadas de lágrima.
Porquê, meu Deus! A Árvore não lhe queria responder, não lhe queria dizer qual o antepassado a que estava preso, para poder inscrever o seu caso, na sua folha, ao lado dos outros? Se ele devia enlouquecer, porque é que a Árvore lho não dizia nitidamente, o que o teria acalmado, porque ele julgava sofrer somente da incerteza? Mas as lágrimas obscureciam-lhe a vista, e continuava a olhar, aniquilava-se naquela necessidade de saber, em que sua razão acabava por vacilar. (...)”.
(ZOLA, S/D: 130).

Não terá sucesso nestes estudos, porque entendemos ser muito difícil achar conclusivamente um motivo ou determinismo hereditário ou biológico nas ações pessoais e sociais. Estas são, sobretudo sociais, possuindo específicas determinações, inclusive hereditárias, o que só demonstra que devemos considerar o amplo labor de Pascal sobre este assunto.
Assim como boa parte dos cientistas de sua época, Pascal de sua maneira consegue explicar muitos aspectos da complexidade cotidiana e realiza muitas formulações de resistências epistemológicas ao transcender a barreira metodológica de muitas ciências, que embrionariamente se formavam nesta época.
Se tratados de forma absoluta, ortodoxa e fechada, tanto a ciência como a religião pode ser excludente, reproduzindo crenças cegas e visões formais de realidade.
Os estudos médicos e científicos de Doutor Pascal (ou seriam não-científicos?), proporcionaram questionamentos e argumentos para as pessoas que são avessas às rígidas separações entre sujeitos e objetos, ou entre a ciência e a não-ciência (arte ou transdisciplinariedade).
Entretanto, entendemos que mesmos nos horizontes disciplinares podem-se defender concepções da complexidade da vida. Epistemologicamente as Ciências possuem métodos e fronteiras analíticas que não necessariamente são excludentes ou capazes de conceber a complexidade do mundo, sendo muito importante a consideração deste aspecto.
Longe de sermos niilistas, podemos dizer que onde existe a eterna dúvida pode significar a eterna esperança de novas situações. A defesa da vida é uma grande arma nesta empreitada, como podemos ver a seguir:

“Em risco de fazer monstros, era preciso criar, pois que, apesar dos doentes e dos doidos que ela cria, não se cansa de criar, com a esperança, decerto, de que um dia virão os sadios e os sensatos”.
(ZOLA, S/D: 326).

O nascimento do filho de Pascal e de Clotilde aparece como sinal dos novos tempos para aquela família, no qual podemos fazer um paralelo com a chegada de novos tempos também para a ciência e para a humanidade.


BIBLIOGRAFIA

CARVALHO, Marcos Bernardino de. “Geografia e Complexidade”. In: Silva, A. A. D. & Galeno, A. (orgs.). “Geografia, ciência do complexus”. Porto Alegre: Editora Sulina, 2004.

ZOLA, Emílio. “O Doutor Pascal”, Lisboa: Livraria Editora Guimarães & Cia, s/d.

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