ADONIRAN BARBOSA, LINGUAGEM E
SOCIEDADE[1]
Wladimir Jansen Ferreira[2]
Entende-se que a idéia,
tal qual uma letra de música de Adoniran Barbosa, é a expressão do real
objetivado subjetivamente, pois segundo LEFEBVRE (1979, p. 164) “(...) A idéia expressa precisamente a
unidade do racional e do real, a objetividade do pensamento humano, mas na
natureza e pela natureza”.
Neste sentido temos de ver
que de sua maneira, Adoniran Barbosa decifra e redesenha as ruas, as pessoas e
a cidade de São Paulo. Foi um observador de práticas culturais e personagens do
cotidiano, se auto-intitulando como “observattore” [3].
Apesar de ser raro na sociedade capitalista, que é pautada na desigualdade
social, Adoniran utiliza-se de uma extrema sensibilidade humana, sendo um
exímio “apanhador” de vozes e tipos de ruas. Pode-se afirmar que realizou uma
obra fotográfica enxergando nos aspectos mais profundos da subjetividade e
individualidade dos moradores da cidade.
Foi um verdadeiro
“repórter dos bairros pobres” de São Paulo, tendo um amplo retorno desta
população que foi um dos grandes propulsores de sua prática artista. Mas nada
foi conquistado de maneira fácil.
A sua vida, assim como
toda sua obra, também é marcada pelo bom humor e a criatividade, começando pela
escolha de seu “nome artístico”. Na realidade, Adoniran Barbosa não era o seu
nome de batismo, mas João Rubinato. Ele achava que João Rubinato não era nome
de cantor de samba, tinha de ser algo mais “abrasileirado”. Resolveu mudar e de
um amigo pegou emprestado Adoniran e, em homenagem ao sambista Luiz Barbosa,
adotou seu sobrenome. Naquele momento de meados do ano de 1933 nascia Adoniran
Barbosa.
A vida difícil de Adoniran
Barbosa já pode ser considerada uma crônica de formação da cidade de São Paulo.
Era filhos de imigrantes pobres italianos, que saíram de Cavarzere (localizada
na região de Vêneto) e desembarcaram no Porto de Santos no dia 15/09/1895.
Inicialmente se
estabeleceram na cidade de Tietê, trabalhando de camponeses nas fazendas de
café da região. Em 1896 surge uma oportunidade de emprego para o pai de
Adoniran em uma fábrica de sabão da cidade de Valinhos, que na época era um
subdistrito de Campinas.
Adoniran Barbosa nasceu
nesta cidade em 1910, sendo o sétimo filho de uma família de trabalhadores de
baixa renda. Sua família se instala numa época de “prosperidade” econômica (não
para todos), onde a produção de café na região de Campinas aumentava
vertiginosamente[4].
Entretanto vieram trabalhar em outras atividades produtivas, como podemos
verificar na seguinte declaração:
Meu pai era imigrante da Itália, Treviso. Uma das primeiras imigrações. E foram para Valinhos. Não carpi café, não. Trabalhar com sabão, fazê sabão, com os Milane. Os Milane eram ricos, já. Empregaram meu pai pra fazê sabão, lá. Meu pai sabia fazê sabão. E minha mãe lavava roupa pra eles, pra todos lá... E minha mãe também tinha vindo da Itália... Eu era o caçula. Tinha três irmãs e três irmãos. [5]
Sua família veio ao Brasil
numa época em que tivemos grandes levas migratórias. Mais de 1/3 (1.156.472)
dos imigrantes que entraram no Brasil, entre 1890 e 1929, eram italianos. Em
São Paulo, 1/3 dos 694.489 imigrantes eram italianos.[6] A
população paulistana em 1893 era de 130.775 habitantes, sendo 59.307
brasileiros e 71.468 estrangeiros (principalmente italianos) [7],
fato que só inverteria entre os anos 20 e 30 do século XX. Houve muitas rusgas
entre brasileiros e italianos, que diminuiria com o tempo e o convívio.
Cresceu e viveu boa parte
de sua vida em malocas ou em casas de moradores de baixa renda, tendo que
largar os estudos na infância para ajudar no sustento familiar em trabalhos
informais, como ajudante do pai na construção de parte da “Ferrovia São
Paulo Railway” (a Santos-Jundiaí, inaugurada em 1867). Podemos verificar
sua situação neste depoimento de Adoniran:
(...) naquele tempo não tinha jardim da infância, eu
freqüentava era as ruas da infância. Bunito! Dá samba, não? Durou pouco a
brincadeira, pois daí a uns par de meis mudamos pra Jundiaí e lá me enfiaram
num grupo escolar. Fiquei lá dentro a muque, só até o terceiro ano. As aulas
eram de manhã, e de tarde ia ajudar meu pai a carregar vagão na Estrada de
Ferro São Paulo Railways – hoje Santos a Jundiaí: tijolos, telhas, lenha.
Naquele tempo eu já dizia: ‘Vamo, João tem muita lenha para carregar’. Pra você
ver que esse negócio de dizê: ‘tem muita lenha’, ‘é uma lenha’, não é coisa tão
nova assim. [8]
Nesta labuta, ironicamente
sua família ajuda na construção do “progréssio” de muitas cidades do Estado de
São Paulo, assunto este que será muito abordado e criticado no decorrer da obra
de Adoniran Barbosa.
Sua família ficaria alguns
anos em Valinhos, sendo obrigada a se “retirar” para outros lugares a procura
de emprego. Em 1918 instalam-se na cidade de Jundiaí, onde João Rubinato
trabalha na “Estrada de Ferro São Paulo Railway”, e em 1924 a família se
instalaria em Santo André.
Em Santo André Adoniran
trabalharia em diversas atividades profissionais, tais como entregador de
marmitas (onde comia parte da entrega), varredor de fábrica, serralheiro,
balconista, tecelão, encanador, mascate e garçom na casa de um “grão-fino” da
época.
Consegue um emprego em uma
loja de tecidos no centro da cidade de São Paulo no ano de 1932, mudando-se
agora sem a presença da família para a cidade que marcaria sua vida.
Sua família foi
“desterritorializada” do campo para a cidade, tendo de sair de seus lugares na
perspectiva de “progresso pessoal”, que geralmente não é alcançada na cidade
pela população pobre.
Adoniran foi obrigado a
largar a escola no terceiro ano do ensino fundamental para trabalhar no sustento
de casa. Esse fato marcaria decisivamente a sua vida. Digo isto, pois Adoniran
Barbosa era semi-alfabetizado, o que dificultou sua entrada no mercado de
trabalho. Podemos verificar suas “lembranças escolares” na passagem a seguir de
MUGNAINI JR (2002, p. 18): “Fiquei
lá dentro a muque, só tinha até o terceiro ano (primário). Lá em Jundiaí
ninguém ia além disso, pois não dava...”
É muito comum para as
famílias de periferia, acontecer este fenômeno dos filhos abandonarem os
estudos escolares para ajudar na parca renda familiar. A lógica da sociedade
capitalista, onde poucos possuem muito e muitos possuem quase nada, faz com que
as pessoas se submetam a viver nos limites. Limite do desespero, limite da
sobrevivência e limite de abandonar os estudos (conhecimento) para cair de cara
no mundo, sem perspectiva de vida ou compreensão dos motivos que os levaram a
este estado.
Existem várias maneiras em
que as massas lidam com esta situação de limite. Podendo ser através da
violência, da subordinação às leis excludentes, na organização coletiva
(partido ou movimento popular), ou utilizando a arte. A arte é uma forma em que
o artista representa o seu mundo, ou seja, ela pode ser entendida como uma
expressão da realidade, pois o artista faz parte desta, sendo sujeito ativo.
Para o proletariado, o
mercado de trabalho é o local onde será feita sua sobrevivência e a busca da
sua parca subsistência, diferentemente para a burguesia, que o considera como
um local de enriquecimento retirando-se mais-valia do primeiro. Sendo assim,
Adoniran Barbosa, teve muita dificuldade para entrar no mercado de trabalho
paulistano, mas desenvolve algo que o consagraria: a arte. Passou por muitos
sofrimentos na infância pobre, mas sua sociabilidade nas malocas possibilitou
ter, além de uma musicalidade, um humor cômico.
A educação por ele recebida foi construída no “mundo da vida”, sendo uma
formação que se deu antes e durante o período de sua curta escolarização. Houve
ums forte influência e contato com a diversidade cultural e o aprendizado pela
prática da geografia da cidade a ela relacionada.
Por conta das mudanças de emprego de sua família, conheceu e morou em
vários lugares de São Paulo, despertando a atenção de Adoniran para as
diferenças sociais e étnicas. Tal socialização foi decisiva na sua vida, pois o
convívio na diferença e com a diferença foi o alicerce sobre o qual ele
construiu valores como o respeito, a solidariedade e a tolerância.
Adoniran se instala em São Paulo num
período marcante desta, onde tínhamos um processo de industrialização e
urbanização muito intensa, além de uma significativa diferenciação dos
moradores em classes sociais. Era um morador de baixa renda da cidade, onde
seus primeiros empregos foram temporários ou informais, mas só consegue um
emprego fixo quando trabalha de músico e rádio-ator-comediante nas rádios de
São Paulo, a partir de 1935.
Para entendermos
minimamente a obra de Adoniran Barbosa, é de extrema importância considerarmos
as vicissitudes em sua (sobre)vivência no “caos urbano” paulistano, além das
atividades sociais e produtivas que realizava.
As desgraças dos lugares por onde
passou e da musicalidade dos moradores de baixa renda tiveram influência
decisiva na concepção de suas letras de música. Começou a escrevê-las para
problematizar e descrever os fatos do cotidiano, sendo verdadeiras crônicas da
realidade, falando e interpretando a realidade da população, sobretudo a
marginalizada. Tinha a prática de “escrever andando”, reparando nos fatos do
seu entorno, descrevendo e interpretando de sua maneira, como podemos verificar
abaixo:
Bolei ser mascate. Vendia meias e retalhos nas ruas, por
aqueles bairros pobres. Andava o dia inteiro. Ajudava o serviço cantar um
pouco. Sem querer, fui fazendo uns sambas, enquanto andava. E peguei esse jeito
de compor andando, até hoje.[9]
Foi um músico que
interiorizou e representou magistralmente os contraditórios aspectos da cidade,
tendo uma facilidade de descrever e interpretar sua realidade que se apegava
nos aspectos cômicos e sarcásticos. Estas descrições se materializavam, tanto em
personagens humorísticos que interpretaria em quase toda sua vida artística,
quanto na concepção de letras de músicas.
O humor no rádio e depois
na música foram os meios encontrados por Adoniran Barbosa, na difícil
sobrevivência no urbano paulistano. Um aspecto marcante nas suas letras de
música foi o “humor reflexivo” que era trágico e melancólico. No entanto, esta
melancolia não deixava de ser alegre e festiva. Podemos dizer que conseguiu
extrair a tragédia que existe no âmago da comédia e a comédia que existe no
âmago da tragédia.
O seu humor era
“reflexivo”, pois ele fazia as pessoas pensarem sobre o seu cotidiano e sua
situação. Ele não admitia, mas indiretamente ou inconscientemente era um
militante social, fazendo as massas refletirem sobre seu estado. Adoniran,
sobretudo, queria fazer com que a sociedade ouvisse o povo pobre, seguindo o
fluxo do cotidiano para criticá-lo, ou seja, segundo KRAUSCHE (1985, p. 62): “(...)
A sua música cantada no meio da multidão foi o seu modo para interromper os
passos dessa multidão”.
Entre outras situações,
estavam expressas nestas o anseio de dignidade humana que leva o trabalhador a
orgulhar-se de seu trabalho, ainda que injustamente remunerado; o erguer com as
próprias mãos uma casa para si e para os seus, mesmo que ela não passe de uma
maloca; a busca de uma forma de segurança nas instituições legais, por
discriminatórias ou corrompidas que sejam, etc.
Adoniran Barbosa começa a
escrever letras de músicas a partir dos anos 30, tendo nos anos 50, 60 e 70
como o período mais fértil em que as escreve. Entretanto, as constantes
mudanças de estilos de vida e atividades profissionais foram decisivas na
concepção destas. Além de ter morado em malocas e chácara, exerceu diferentes
atividades profissionais, mas destaca-se e firma-se como rádio-ator.
Para sobreviver na cidade
grande, Adoniran desenvolve sua musicalidade e a potencialidade artística.
Depois de tentar sem sucesso se lançar como compositor e cantor nos anos 30,
Adoniran consegue emprego fixo em uma rádio graças à sugestão do amigo Antônio
Rago.
Neste período muitas
pessoas procuravam ascensão social através da música ou pelo rádio. “Bambas” e
boêmios de São Paulo concentravam-se no Largo da Misericórdia, local em que
tínhamos três das mais importantes rádios paulistanas da época (Record,
Cruzeiro do Sul e Colúmbia do Brasil).
Conviviam muitos artistas,
músicos e aventureiros neste local de rica efervescência cultural, poética e
também de sobrevivência. Afirmo isso porque os artistas precisavam vender sua
força de trabalho para garantir a sua sobrevivência e subsistência. Adoniran
circulava livremente com pessoas do gabarito de Antônio Rago, Alvarenga,
Ranchinho, Paraguassu, Copinha, Wilson Baptista, Erasmo Silva, Deo, Risadinha,
Nelson Gonçalves, Januário de Oliveira, Zé Pacífico, Mario Zan, Jacob do
Bandolin, Isaurinha Garcia, Vicente Celestino, Silvio Caldas, Paulinho
Nogueira, etc.
Adoniran Barbosa escreve e
grava algumas poucas músicas nos anos 30, mas destacar-se-ia trabalhando em
rádio-teatro e musicais como discotecário, músico de regional, locutor e
rádio-ator. Como rádio-ator faria bastante sucesso tocando em regionais e
interpretando inúmeros personagens nos programas humorísticos.
Passaria por diversas
rádios entre 1935 e 1941, ano em que conseguiria emprego na Rádio Record. Nesta
rádio se “encontraria” e se firmaria trabalhando em vários programas
humorísticos até sua aposentadoria em 1972. Concordo com MUGNAINI JR (2002, p.
43) quando ele afirma que: “A década de
40, porém, pertence ao Adoniran Barbosa ator, lançador de Charutinho, Zé
Cunversa, Jean Rubinet e outros tipos quase tão numerosos quanto suas dezenas
de empregos antes de se revelar artista”.
Entre 1941 e 1951 Adoniran
escreve pouquíssimas músicas, voltando-se para a atividade de rádio-ator e
humorista. Sua experiência no rádio rendeu-lhe muitos frutos e influenciou
decisivamente na sua carreira de músico. Segundo KRAUSCHE (1985, p. 24):
E foi sendo ator, intermediário entre a rua e o rádio,
criando e inspirando tipos radiofônicos, imprimindo às ondas sonoras as falas e
as entonações de certos bairros característicos da cidade. Por esse caminho,
foi cultivando todo um modo de falar e sentir, fundamento de sua linguagem de
sambista. Ser ator acabou se revelando um componente de ser músico. Adoniran
não aprendeu simplesmente com o rádio, mas com o encontro que ele mesmo
promoveu entre o rádio e o cotidiano de sua grande ‘aldeia’.
Zuza Homem de Mello sintetiza
a importância da relação de Adoniran Barbosa com o rádio e a população
paulistana:
Sua voz, ou melhor, as dezenas de vozes de Adoniran,
ouvidas nos velhos rádios elétricos da época, eram carregadas dos sons das
conversas nos corredores da rádio, nos botequins da Quintino, nos campos de
futebol de várzea, nos jogos de bocha, nos bairros populares, nos erros de
concordância dos italianos e dos caipiras. Aos poucos o rádioator foi se
abastecendo para compor uma obra musical, para transformar sons esparsos e
aparentemente sem função, em sambas, no samba da cidade. Adoniran foi deixando
de interpretar e torna-se criador. [10]
Segundo KRAUSCHE (1985, p. 27 e 28) em
suas representações artísticas, Adoniran assimilou os vários tipos por ele
encarnados, tornando-as “(...) síntese e mosaico, representando um conjunto
de dramas populares reunidos em sua sonoridade, em sua gramática, em sua
sintaxe, na estrutura de um modo de cantar”. No modo de cantar as letras e
na forma que é estruturada as melodias, percebe-se o sotaque caipira e
características locais deste personagem da cidade.
Um aspecto marcante das letras de Adoniran
Barbosa foram os constantes erros gramaticais - que indiretamente quebravam a
formalização do discurso lingüístico - mas isto era feito na intenção de
reforçar o que falava. Este “estropiamento” da gramática portuguesa muitas vezes
vinha de forma involuntária, tendo como intenção se aproximar ao máximo da
realidade, como podemos ver nas duas passagens a seguir:
Só faço samba pra povo.
Por isso, faço letras com erros de português, porquê é assim que o povo fala.
Além disso, acho que o samba, assim, fica mais bonito de se cantar. [11]
(...)
Falo
errado porque quero e gosto. Todo mundo fala assim e eu uso no samba sem
forçar. Quando eu faço a letra, olho bem e me pergunto: dá pra entender? Dá.
Então vai.[12]
Além do mais ele criava
neologismos livremente para que pudesse fazer rimas em seus versos. Veja como
isto é facilmente notado nestas duas estrofes. A primeira é extraída de “Pafúnça”,
letra escrita com Osvaldo Moles em 1958:
O teu coração sem amor
Se esfriou, se desligou,
Até parece, Pafúnça,
Aqueles alevador,
Que está escrito "num funúnça"
E a gente sobe a pé!
E pra me judiar, Pafúnça,
Nem meu nome tu pronúnça.
Para rimar com Pafúnça
inventa as palavras "num funúnça" (não funciona) e
"pronúnça" (pronúncia). Uma outra invenção pode ser visualizada em “Tocar
na Banda” (de 1965), que versa o seguinte: “Num relógio é quatro e
vinte/ No outro é quatro e meia/ É que de um relógio pra outro/ As hora vareia”.
As estrofes e estes
depoimentos de Adoniran somente afirmam que foi um artista excepcional em
utilizar a língua materna e por “descrever sua tribo”, parodiando o escritor
Fiódor Dostoiévski. Não considero que sua gramática teria um “português
estropiado”, mas sim uma variação do português no Brasil, até porque gramática
não é língua:
Perceber o português falado em
toda a extensão do território brasileiro como único é o mesmo que fechar os
olhos para todas as culturas existentes em nosso país. É olvidar, dentre outros
fatores, de todos os processos imigratórios e migratórios que constituíram e
continuam constituindo a nossa história. É não perceber que politicamente
pertencemos a diferentes estruturas sociais, que nos inserem em distintos
contextos acabando por construir formas desiguais de linguagem dentro de uma
mesma língua.
É através da linguagem que uma
sociedade se comunica e retrata o conhecimento e entendimento de si própria e
do mundo que a cerca. É na linguagem que se refletem a identificação e a
diferenciação de cada comunidade e também a inserção do indivíduo em diferentes
agrupamentos, estratos sociais, faixas etárias, gêneros, graus de escolaridade.
[13]
No entanto, Adoniran
relutaria bastante na realização das magistrais intervenções
poéticas-gramaticais, pois ninguém compraria suas letras daquela forma,
situação que ocorreu até os anos 50. Nesta década, Adoniran – que fazia sucesso
em programas humorístico no rádio – fortalece a amizade com o grupo Demônios da Garoa, que foram um dos
grandes impulsionadores e incentivadores destas práticas nas músicas.
Os Demônios da Garoa caricaturavam a “batucada” dos engraxates que
trabalhavam no trecho entre as Praças da Sé e Clóvis Bevilacqua no centro da
cidade [14].
Focalizavam o lado cômico das letras, reforçando a tristeza utilizando-se de
intensa ironia e alegria. Interpretavam todas as músicas com uma forte
perspectiva humorística em contraposição ao bolero, à “fossa” e à “música dor
de cotovelo” que predominavam no cenário musical. Foram eles que mais deram
viabilidade e proporcionaram sucessos musicais para Adoniran Barbosa.
Estes ampliaram os erros
gramaticais e introduziram os famosos “quais-quais”
nas músicas de Adoniran, como na música “Saudosa
Maloca” que teve reforçado o lado cômico do acontecimento. Esta
modificação, que inicialmente aborreceu Adoniran Barbosa, ajuda a ganhar o
primeiro lugar do “Concurso Carnavalesco da Cidade de São Paulo de 1955” e
proporciona um tremendo sucesso da música em âmbito nacional [15].
Com a renda desta música Adoniran consegue comprar uma chácara no bairro Cidade
Ademar, localizado na periferia da cidade de São Paulo.
Os Demônios ganham vários
Concursos Carnavalescos e Musicais com várias de suas músicas, tais como: “Malvina” (1951), “Joga a chave” (1953) “Saudosa
maloca” (1954), “Samba do Arnesto” (1954)
e “As Mariposa” (1955). O principal
sucesso deles foi a obra de arte “Trem
das Onze”, que ironicamente ganhou o Concurso do IV Centenário da cidade do
Rio de Janeiro em 1965.
A partir deste momento,
Adoniran assume de vez os erros gramaticais nas suas letras, deixando-as mais
bonitas ainda. Em um depoimento na TV Cultura [16],
Adoniran diz que a música “Iracema” (de 1956) foi “o primeiro samba errado que
fiz”, mas já encontrávamos “letras estropiadas” anteriores a esta, tais como em
“Samba do Arnesto” (feito em 1953), “Saudosa Maloca” (feito em 1951), “Tô
Com a Cara Torta” (feita em 1945) e “Malvina”
(gravado em 1951). Por este motivo Adoniran chegou a ser censurado nos anos 60
e 70 pela ditadura militar em algumas situações [17].
O fato é que depois de
1956 escreveu muitas letras de músicas usando uma poesia marcante. Ele tinha
consciência na formação de suas letras, como podemos ver a seguir:
Olha eu não tenho nem formação de instrução secundária.
Maloca se liga com o meu fraseado. De acordo com minha instrução, entende? É
ligado com o povo, eu falo do modo do povo e, se o povo gostou da minha música,
é porque eu tô certo. Esse negócio de falar errado não é fácil. Precisa saber
falar errado. Muitas vezes o errado é certo. É a mesma coisa que uma pessoa
forçar falar tudo direitinho, perfeito, sai artificial, né, feio, fica sem
graça... mas falar errado também é difícil... Se aparece uma palavra errada na
música, mas ela ficou boa pro ouvido, eu deixo. [18]
Sabia que “falar errado era uma arte”,
com o risco de “virar deboche”. Segundo MUGNAINI Jr (2002, p. 100),
Adoniran até brincava com
o sucesso e a repercussão de suas letras, onde o errado hoje pode vir a ser
regra amanhã: “Sou o único compositor que
cria polêmica nas escolas; os professores ficam discutindo com os alunos as
minhas letras e ensinando que é assim que se fala, mas não é assim que se
escreve”. Este “anti-herói” também tinha a sensibilidade de enxergar nas entrelinhas
o sentimento e a situação do povo: “Pode
vir vinte Mobral, todos continuarão a falar errado. O povo fala assim. A
maioria fala errado. De vez em quando, ao falar com um doutor, eu até posso
falar ‘nós devíamos’ Mas é raro, é esquisito”.
Na segunda passagem acima
pode parecer que Adoniran era conformista com a desgraça do povo, mas
interpreto que suas declarações assim como suas letras falavam de um povo e uma
cidade sem demagogia ou estética de cartão postal, tirando a banalidade do
fato-comum, apontando afetuosamente os defeitos e os problemas vivenciados pela
população pobre.
Era um “malabarista
musical”, onde suas letras, que são simples a primeira vista, são
desconcertantes, possuindo uma pureza e tranqüilidade. Havia um casamento da
melodia com a letra, tendo muitas vezes ausência de refrão e com temas longos
sem repetição.
De uma forma muito curiosa era exposto
o seu sentimento com a cidade e moradores, pois era muito caricatural. Usava
muitos aspectos de melancolia em suas letras, mas nestas havia muita ironia e
nostalgia. Mas a realidade se expressa caricaturalmente. Digo isso desafiando
que “atire a primeira pedra” quem nunca perdeu o último ônibus ou trem que
estava indo para a casa! Ou quem nunca esqueceu a chave de casa e ficou no lado
de fora!
Suas letras de música possuem uma poética
de denúncia e de rebeldia na realidade dos excluídos, muitas vezes de forma
involuntária. Podemos afirmar que é um esboço ou tentativa de uma resistência
da população pobre e também da narrativa na cultura popular. Seus personagens
possuem um anti-heroísmo épico e introvertido, por muitas vezes estar
renunciando a um consumismo e o de contrapor-se ao “progresso” imposto pela
sociedade.
O conselho e a sabedoria
popular são anacrônicos na sociedade capitalista, mas estão presentes nas
“narrativas musicais” de Adoniran. O pesquisador da cultura brasileira Joseph
Luyten (1992) diz que narrar é a capacidade de trocar experiências e viver.
Além do mais, podemos refletir que a sociedade moderna tende a extinguir a
narrativa pelo individualismo.
A narrativa popular ocorre
na forma poética, como em prosa (contos, anedotas, ditados, provérbios, lendas,
teatro) e em poesia (cordel, embolada, repentes e as letras de músicas de
Adoniran Barbosa). Compreende-se aqui que o artista representa o homem de seu
tempo e temos de compreendê-la como uma totalidade. Segundo LUYTEN (1992, p. 34):
“(...) países como o Brasil esqueceram-se
de que sua verdadeira cultura está não nas adaptações brancas mas sim, na
produção cultural resultante da vivência de todas as pessoas que aqui estão”.
A cultura popular está
intimamente relacionada com seu ambiente, tendo o poder de se adaptar a
diferentes grupos e modos regionais de vida, além de necessariamente mudar
quando muda seu ambiente.
A expansão dos
pressupostos capitalistas de produção nas sociedades interfere decisivamente na
cultura material local afetando não só os objetos artesanais como as
representações artísticas. Entretanto, encontramos muitas pessoas que resistem
a esta cruel investida do capital na padronização dos modos de vida.
Existe possibilidade de
haver uma subversão dos valores imposto pela sociedade capitalista, tanto em
artistas populares (tais como Adoniran Barbosa e nos muitos “rappers” da
atualidade), quanto em um núcleo de base de uma organização política de
esquerda.
Se não houvesse subversão
não haveria possibilidade de mudança na realidade ou mesmo não existiria
ciência. Sonhar é preciso e é preciso acreditar nos sonhos, como diria Lênin em
“Que Fazer?”. O
sonho é nesse caso o patrono da ciência, pois sonhamos e transformamos os
sonhos em realidade pela luta.
Neste sentido as
transformações econômicas e do modo de produção levam a uma ampla transformação
cultural e social, sendo determinante na produção social das pessoas que vivem
nas cidades e também para as produções artísticas de indivíduos como Adoniran
Barbosa.
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[1] Este artigo tem
algumas idéias do Trabalho de Conclusão do Curso de graduação em geografia na PUC-SP,
defendido no ano de 2005.
[2] Professor
de geografia nas redes estadual e municipal de São Paulo. Formado em
bacharelado e licenciatura de geografia na PUC-SP (2001-2005). Especialista em
ensino de geografia pela PUC-SP (2010-2011).
[3]
Declaração de Adoniran Barbosa dada na entrevista concedida ao Museu de Imagem
e Som (MIS) de São Paulo em 04/12/1981, na fita 113 (11-13).
[4] De 491.307 em 1854 para
3.008.350 em 1886, segundo estatísticas de CATTELLI Jr, Roberto. Brasil:
do café à industria”, 1992.
[5] Depoimento de Adoniran Barbosa na entrevista no Museu de Imagem e Som de São Paulo, 1981.
[6] Estatísticas de MOREIRA,
Sílvia. São Paulo na Primeira República, 1988, pág. 11.
[7] Estatísticas de TOLEDO, Roberto Pompeu de. A
Capital da Solidão – uma história de São Paulo das origens a 1900,
2003, pág. 475.
[8]
ROCHA, Francisco. “Adoniran Barbosa: o poeta da Cidade”, 2002, pág. 132. Apud de “Nova História da Música Popular Brasileira:
Adoniran Barbosa & Paulo Vanzolini”, São Paulo, Abril Cultural, 1978,
p. 2.
[9] Fala de Adoniran Barbosa em ROCHA,
Francisco. “Adoniran Barbosa: o poeta da Cidade”, 2002, pág. 152-153.
Extraído da “Nova História da Música
Popular Brasileira. Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini”. São Paulo, Abril
Cultural, 1978, p. 3.
[10] ROCHA
(2002) p. 128-129, Apud Zuza Homem de Mello, Jornal O Estado de S. Paulo, 1982, p. 43.
[11] Adoniran Barbosa no artigo “Um
Poeta E Sua Gente, De Corpo Inteiro” de Eduardo Martins no jornal Estado de S. Paulo em 03/06/1984.
[12] NIGRI, A. e MOURA, F. “Adoniran - se o senhor não está
lembrado”, 2002, pág. 25.
[13] JOGAS, Mônica Guedes e GOMES, Nataniel dos Santos. “Adoniran Barbosa, o defensor
involuntário do combate ao preconceito lingüístico”. Apud LEITE, Yonne & CALLOU, Dinah. Como falam os brasileiros?, Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
[14]
ROCHA, Francisco (2002), pág. 138.
[15] As letras “Saudosa Maloca”
e “Samba do Arnesto” na voz dos Demônios
da Garoa, venderam 90mil cópias nos primeiros 3 meses no ano de 1955.
Ironicamente a música começa a fazer sucesso um ano depois da cidade de São
Paulo fazer 400 anos de idade, onde só tínhamos músicas que falavam de seus
aspectos bonitos e grandiosos.
[16]
Faixa 4 do CD “Documento Inédito”, Gravadora Eldorado.
[17] A marchinha “Aqui Gerarda” que era a
sensação do carnaval paulistano de 1960, foi proibida de tocar nas rádios, sob
o argumento de ser machista, fato que não condiz com a realidade, pois era uma
brincadeira que faziam no programa humorístico de rádio. Durante a ditadura
militar, os militares proibiram Adoniran gravar em 1973 “Um Samba no Bexiga”
e “Samba do Arnesto” sob alegação de terem muitos erros gramaticais.
Além do que, disseram que na segunda música havia a citação “indireta” de
Ernesto Geisel na figura de “Arnesto”. Entretanto esta foi gravada por Adoniran
em 1974 e pelos Originais do Samba no
fim de 1973.
[18] ROCHA, Francisco. Op. Cit.,
pg 128. Apud reportagem “Malandragem
é Fome” de Bernardo Ajzemberg, Última Hora, São Paulo, 03/02/1978, p.
6-7.
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