Quem
escreveu a Bíblia?
A história de Deus foi escrita
pelos homens. Mas quem é o autor do livro mais influente de todos os tempos? As
respostas são surpreendentes - e vão mudar sua maneira de ver as Escrituras
por Texto José Francisco Botelho
Em algum lugar do Oriente Médio, por volta do século 10 a.C., uma pessoa
decidiu escrever um livro. Pegou
uma pena, nanquim e folhas de papiro (uma planta importada do Egito) e começou
a contar uma história mágica,
diferente de tudo o que já havia sido escrito. Era tão forte, mas tão forte,
que virou uma obsessão. Durante os 1 000 anos seguintes, outras pessoas
continuariam reescrevendo, rasurando e compilando aquele texto, que viria a se
tornar o maior best seller de todos os tempos: a Bíblia. Ela
apresentou uma teoria para o surgimento do homem,
trouxe os fundamentos do judaísmo e do cristianismo, influenciou o surgimento
do islã, mudou a história da arte
– sem a Bíblia, não existiriam os afrescos de
Michelangelo nem os quadros de Leonardo da Vinci – e nos legou noções básicas
da vida moderna, como os direitos humanos e o livre-arbítrio. Mas quem
escreveu, afinal, o livro mais
importante que a humanidade já viu? Quem eram e o que pensavam essas pessoas?
Como criaram o enredo, e quem ditou a voz e o estilo de Deus? O que está
na Bíblia deve ser levado ao pé da letra,
o que até hoje provoca conflitos armados? A resposta tradicional você já
conhece: segundo a tradição judaico-cristã, o autor da Bíblia é o
próprio Todo-Poderoso. E ponto final. Mas a verdade é um pouco mais complexa
que isso.
A própria Igreja admite
que a revelação divina só veio até nós por meio de mãos humanas. A palavra do
Senhor é sagrada, mas foi escrita por
reles mortais. Como não sobraram vestígios nem evidências concretas da maioria
deles, a chave para encontrá-los está na própria Bíblia. Mas ela
não é um simples livro: imagine as Escrituras como uma
biblioteca inteira, que guarda textos montados pelo tempo, pela história e pela
fé. Aliás, o termo “Bíblia”, que
usamos no singular, vem do plural grego ta biblia ta hagia – “os livros
sagrados”. A tradição religiosa sempre sustentou que cada livro bíblico
foi escrito por um autor claramente identificável. Os 5 primeiros livros do
Antigo Testamento (que no judaísmo se chamam Torá e no catolicismo Pentateuco)
teriam sido escritos pelo profeta Moisés por volta de 1200 a.C. Os Salmos
seriam obra do rei Davi, o autor de Juízes seria o profeta Samuel, e assim por
diante. Hoje, a maioria dos estudiosos acredita que os livros sagrados foram um
trabalho coletivo. E há uma boa explicação para isso.
As histórias da Bíblia derivam
de lendas surgidas na chamada Terra de Canaã, que hoje corresponde a Líbano,
Palestina, Israel e pedaços da Jordânia, do Egito e da Síria. Durante séculos acreditou-se
que Canaã fora dominada pelos hebreus. Mas descobertas recentes da arqueologia
revelam que, na maior parte do tempo, Canaã não foi um Estado, mas uma terra
sem fronteiras habitada por diversos povos – os hebreus eram apenas uma entre
muitas tribos que andavam por ali. Por isso, sua cultura e seus
escritos foram fortemente influenciadas por vizinhos como os cananeus, que
viviam ali desde o ano 5000 a.C. E eles não foram os únicos a influenciar as
histórias do livro sagrado.
As raízes da árvore bíblica também remontam aos sumérios, antigos
habitantes do atual Iraque, que no 3o milênio a.C. escreveram a Epopéia de
Gilgamesh. Essa história,
protagonizada pelo semideus Gilgamesh, menciona uma enchente que devasta o
mundo (e da qual algumas pessoas se salvam construindo um barco). Notou
semelhanças com a Bíblia e seus
textos sobre o dilúvio, a arca de Noé, o fato de Cristo ser humano e divino ao
mesmo tempo? Não é mera coincidência. “A Bíblia era uma
obra aberta, com influências de muitas culturas”, afirma o especialista em história antiga
Anderson Zalewsky Vargas, da UFRGS.
Foi entre os séculos 10 e 9 a.C. que os escritores
hebreus começaram a colocar
essa sopa multicultural no papel. Isso aconteceu após o reinado de Davi, que
teria unificado as tribos hebraicas num pequeno e frágil reino por volta do ano
1000 a.C. A primeira versão das Escrituras foi redigida nessa época e
corresponde à maior parte do que hoje são o Gênesis e o Êxodo. Nesses livros, o
tema principal é a relação passional (e às vezes conflituosa) entre Deus e os
homens. Só que, logo no começo da Beeblia, já existiu uma divergência sobre o
papel do homem e do Senhor na história toda.
Isso porque o personagem principal, Deus, é
tratado por dois nomes diferentes.
Em alguns trechos ele é chamado pelo nome próprio, Yahweh – traduzido em
português como Javé ou Jeová. É um tratamento informal, como se o autor fosse
íntimo de Deus. Em outros pontos, o
Todo-Poderoso é chamado de Elohim, um título respeitoso e distante (que pode
ser traduzido simplesmente como “Deus”). Como
se explica isso? Para os fundamentalistas, não tem conversa: Moisés
escreveu tudo sozinho e usou os dois nomes simplesmente porque quis. Só que um trecho desse texto
narra a morte do próprio Moisés. Isso indica que ele não é o único autor. Os
historiadores e a maioria dos religiosos aceitam outra teoria: esses
textos tiveram pelo menos outros dois editores.
Acredita-se que os trechos que falam de Javé sejam os mais antigos,
escritos numa época em que a religiosidade era menos formal. Eles contêm uma
passagem reveladora: antes da criação do mundo, “Yahweh não derramara chuva
sobre a terra, e nem havia homem para lavrar o solo”. Essa frase, “não havia
homem para lavrar o solo”, indica que, na primeira versão da Bíblia, o homem
não era apenas mais uma criação de Deus – ele
desempenha um papel ativo e fundamental na história toda.
“Nesse relato, o homem é co-criador do mundo”, diz o teólogo Humberto
Gonçalves, do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, no Rio Grande do Sul.
Pelo nome que usa para se referir a Deus (Javé),
o autor desses trechos foi apelidado de Javista. Já o outro autor, que teria
vivido por volta de 850 a.C., é apelidado de Eloísta. Mais sisudo e religioso,
ele compôs uma narrativa bastante diferente. Ao contrário do Deus-Javé,
que fez o mundo num único dia, o Deus-Elohim
levou 6 (e descansou no 7o). Nessa história, a
criação é um ato exclusivo de Deus, e o
homem surge apenas no 6o dia, junto aos animais.
Tempos mais tarde, os dois relatos foram misturados por editores
anônimos – e a narrativa do Eloísta, mais comportada, foi parar no início das
Escrituras. Começando por aquela frase incrivelmente simples e poderosa,
notória até entre quem nunca leu a Bíblia: “E, no
início, Deus criou o céu e a terra...”
Em 589 a.C., Jerusalém foi arrasada pelos babilônios, e grande parte da
população foi aprisionada e levada para o atual Iraque. Décadas depois, os
hebreus foram libertados por Ciro, senhor do Império Persa – um conquistador
“esclarecido”, que tinha tolerância religiosa. Aos poucos, os hebreus
retornaram a Canaã – mas com sua fé transformada. Agora os sacerdotes judaicos
rejeitavam o politeísmo e diziam que Javé era o único e absoluto deus do
Universo. “O monoteísmo pode ter surgido pelo contato com os persas – a religião deles, o
masdeísmo, pregava a existência de um deus bondoso,
Ahura Mazda, em constante combate contra um deus maligno,
Arimã. Essa noção se reflete até na idéia cristã de um combate entre Deus e o
Diabo”, afirma Zalewsky, da UFRGS.
A versão final do Pentateuco surgiu por volta de 389 a.C. Nessa época,
um religioso chamado Esdras liderou um grupo de sacerdotes que mudaram
radicalmente o judaísmo – a começar por suas escrituras. Eles editaram os
livros anteriores e escreveram a maior parte dos livros Deuteronômio, Números,
Levítico e também um dos pontos altos da Bíblia: os 10
Mandamentos. Além de afirmar o monoteísmo sem sombra de dúvidas (“amarás a Deus acima de
todas as coisas” é o primeiro mandamento), a reforma conduzida por Esdras
impunha leis religiosas bem rígidas, como a proibição do casamento entre
hebreus e não-hebreus. Algumas das leis encontradas no Levítico se assemelham à
ética moderna dos direitos humanos: “Se um estrangeiro vier morar convosco, não
o maltrates. Ama-o como se fosse um de vós”.
Outras passagens, no entanto, descrevem um Senhor belicoso, vingativo e
sanguinário, que ordena o extermínio de cidades inteiras – mulheres e crianças
incluídas. “Se a religião prega a
compaixão, por que os textos sagrados têm tanto ódio?”, pergunta a historiadora
americana Karen Armstrong, autora de um novo e provocativo estudo sobre a Bíblia. Para os
especialistas, a violência do Antigo Testamento é fruto dos séculos de guerras
com os assírios e os babilônios. Os autores do livro sagrado
foram influenciados por essa atmosfera de ódio, e daí surgiram as histórias em
que Deus se mostra bastante violento e
até cruel. Os redatores da Bíblia estavam
extravasando sua angústia.
Por volta do ano 200 a.C., o cânone (conjunto de livros sagrados)
hebraico já estava finalizado e começou a se alastrar pelo Oriente Médio. A
primeira tradução completa do Antigo Testamento é dessa época. Ela foi feita a
mando do rei Ptolomeu 2o em Alexandria, no Egito, grande centro cultural da
época. Segundo uma lenda, essa tradução (de hebraico para grego) foi realizada
por 72 sábios judeus. Por isso, o texto é conhecido como Septuaginta. Além da
tradução grega, também surgiram versões do Antigo Testamento no idioma aramaico
– que era uma espécie de língua franca do Oriente Médio naquela época.
Dois séculos mais tarde, a Bíblia em
aramaico estava bombando: ela era a mais lida na Judéia, na Samária e na
Galiléia (províncias que formam os atuais territórios de Israel e da
Palestina). Foi aí que um jovem judeu, grande personagem desta história, começou
a se destacar. Como Sócrates, Buda e outros pensadores que mudaram o mundo,
Jesus de Nazaré nada deixou por escrito – os primeiros textos sobre ele foram
produzidos décadas após sua morte.
E o cristianismo já nasceu perseguido: por se recusarem a cultuar os
deuses oficiais, os cristãos eram considerados subversivos pelo Império Romano,
que dominava boa parte do Oriente Médio desde o século 1 a.C. Foi nesse clima
de medo que os cristãos passaram a colocar no papel as histórias de Jesus, que
circulavam em aramaico e também em coiné – um dialeto grego falado pelos mais
pobres. “Os cristãos queriam compreender suas origens e debater seus problemas
de identidade”, diz o teólogo Paulo Nogueira, da Universidade Metodista de São
Paulo. Para fazer isso, criaram um novo gênero literário: o evangelho. Esse
termo, que vem do grego evangélion (“boa-nova”), é um tipo de narrativa
religiosa contando os milagres, os ensinamentos e a vida do Messias.
A maioria dos evangelhos escritos nos séculos 1 e 2 desapareceu. Naquela
época, um “livro” era um amontoado de papiros
avulsos, enrolados em forma de pergaminho, podendo ser facilmente extraviados e
perdidos. Mas alguns evangelhos foram copiados e recopiados à mão, por membros
da Igreja. Até que, por volta do século 4,
tomaram o formato de códice – um conjunto de folhas de couro encadernadas,
ancestral do livro moderno. O problema é que, a
essa altura do campeonato, gerações e gerações de copiadores já haviam
introduzido alterações nos textos originais – seja por descuido, seja de
propósito. “Muitos erros foram feitos nas cópias, erros que às vezes mudaram o
sentido dos textos. Em certos casos, tais erros foram também propositais, de
acordo com a teologia do escrivão”, afirma o padre e teólogo Luigi Schiavo, da
Universidade Católica de Goiás. Quer ver um exemplo?
Sabe aquela famosa cena em que Jesus salva uma adúltera prestes a ser
apedrejada? De acordo com especialistas, esse trecho foi inserido no Evangelho
de João por algum escriba, por volta do século 3. Isso porque, na época, o
cristianismo estava cortando seu cordão umbilical com o judaísmo. E apedrejar
adúlteras é uma das leis que os sacerdotes-escritores judeus haviam colocado no
Pentateuco. A introdução da cena em que Jesus salva a adúltera passa a idéia de
que os ensinamentos de Cristo haviam superado a Torá – e, portanto, os cristãos
já não precisavam respeitar ao pé da letra todos os ensinamentos judeus.
A julgar pelo último livro da Bíblia cristã,
o Apocalipse (que descreve o fim do mundo), o receio de ter suas narrativas
“editadas” era comum entre os autores do Novo Testamento. No versículo 18,
lê-se uma terrível ameaça: “Se alguém fizer acréscimos às páginas deste livro, Deus o
castigará com as pragas descritas aqui”. Essa ameaça reflete bem o clima dos
primeiros séculos do cristianismo: uma verdadeira baderna teológica, com montes
de seitas defendendo idéias diferentes sobre Deus e o
Messias. A seita dos docetas, por exemplo, acreditava que Jesus não teve um
corpo físico. Ele seria um espírito, e sua crucificação e morte não passariam –
literalmente – de ilusão de ótica. Já os ebionistas acreditavam que Jesus não
nascera Filho de Deus, mas fora adotado, já adulto,
pelo Senhor. A primeira tentativa de organizar esse caos das Escrituras ocorreu
por volta de 142 – e o responsável não foi um clérigo, mas um rico comerciante
de navios chamado Marcião.
Ele nasceu na atual Turquia, foi para Roma, converteu-se ao
cristianismo, virou um teólogo influente e resolveu montar sua própria seleção
de textos sagrados. A Bíblia de
Marcião era bem diferente da que conhecemos hoje. Isso porque ele simpatizava
com uma seita cristã hoje desaparecida, o gnosticismo. Para os gnósticos, o Deus do Velho
Testamento não era o mesmo que enviara Jesus – na verdade, as duas divindades
seriam inimigas mortais. O Deus hebraico
era monstruoso e sanguinário, e controlava apenas o mundo material. Já o
universo espiritual seria dominado por um Deus bondoso,
o pai de Jesus. A Bíblia editada
por Marcião continha apenas o Evangelho de João, 11 cartas de Paulo e nenhuma
página do Velho Testamento. Se as idéias de Marcião tivessem triunfado, hoje as
histórias de Adão e Eva no paraíso, a arca de Noé e a travessia do mar Vermelho
não fariam parte da cultura
ocidental. Mas, por volta de 170, o gnosticismo foi declarado proibido pelas
autoridades eclesiásticas, e o primeiro editor da Bíblia cristã
acabou excomungado.
Roma, até então pior inimiga dos cristãos, ia se rendendo à nova fé. Em
313, o imperador romano Constantino se aliou à Igreja. Ele
pretendia usar a força crescente da nova religião para
fortalecer seu império. Para isso, no entanto, precisava de uma fé una e
sólida. A pressão de Constantino levou os mais influentes bispos cristãos a se
reunirem no Concílio de Nicéia, em 325, para colocar ordem na casa de Deus. Ali,
surgiu o cânone do cristianismo – a lista oficial de livros que, segundo a Igreja,
realmente haviam sido inspirados por Deus.
“A escolha também era política. Um grupo afirmou seu poder e autoridade
sobre os outros”, diz o padre Luigi. Esse grupo era o dos cristãos apostólicos,
que ganharam poder ao se aliar com o Império Romano. Os apostólicos eram, por
assim dizer, o “partido do governo”. E por isso definiram o que iria entrar, ou
ser eliminado, das Escrituras.
Eles escolheram os evangelhos de Marcos, Mateus, Lucas e João para
representar a biografia oficial de Cristo, enquanto as invenções dos docetas,
dos ebionistas e de outras seitas foram excluídas, e seus autores declarados
hereges. Os textos excluídos do cânone ganharam o nome de “apócrifos” – palavra
que vem do grego apocrypha, “o que foi ocultado”. A maioria dos apócrifos se
perdeu – afinal de contas, os escribas da Igreja não
estavam interessados em recopiá-los para a posteridade. Mas, com o surgimento
da arqueologia, no século 19, pedaços desses textos foram encontrados nas
areias do Oriente Médio. É o caso de um polêmico texto encontrado em 1886 no
Egito. Ele é assinado por uma certa “Maria” que muitos acreditam ser a
Madalena, discípula de Jesus, presente em vários trechos do Novo Testamento. O
evangelho atribuído a ela é bem feminista: Madalena é descrita como uma figura
tão importante quanto Pedro e os outros apóstolos. Nos primórdios do
cristianismo, as mulheres eram aceitas no clero – e eram, inclusive,
consideradas capazes de fazer profecias. Foi só no século 3 que o sacerdócio
virou monopólio masculino, o que explicaria a censura da apóstola e seu
testemunho. Aliás, tudo indica que Madalena não foi prostituta – idéia que
teria surgido por um erro na interpretação do livro sagrado.
No ano 591, o papa Gregório fez um sermão dizendo que Madalena e outra mulher,
também citada nas Escrituras e essa sim ex-pecadora, na verdade seriam a mesma
pessoa (em 1967, o Vaticano desfez o equívoco, limpando a reputação de Maria).
Na evolução da Bíblia, foram
aparecendo vários trechos machistas – e suspeitos. É o caso de uma passagem
atribuída ao apóstolo Paulo: “A mulher aprenda (...) com toda a sujeição. Não
permito à mulher que ensine, nem que tenha domínio sobre o homem (...) porque
Adão foi formado primeiro, e depois Eva”. É provável que Paulo jamais tenha
escrito essas palavras – porque, na época em que ele viveu, o cristianismo não
pregava a submissão da mulher. Acredita-se que essa parte tenha sido adicionada
por algum escriba por volta do século 2.
Após a conversão do imperador Constantino, o eixo do cristianismo se
deslocou do Oriente Médio para Roma. Só que, para completar a romanização da
fé, faltava um passo: traduzir a palavra de Deus para o
latim. A missão coube ao teólogo Eusebius Hyeronimus, que mais tarde viria a
ser canonizado com o nome de são Jerônimo. Sob ordens do papa Damaso, ele
viajou a Jerusalém em 406 para aprender hebraico e traduzir o Antigo e o Novo
Testamento. Não foi nada fácil: o trabalho durou 17 anos.
Daí saiu a Vulgata, a Bíblia latina,
que até hoje é o texto oficial da Igreja
Católica. Essa é a Bíblia que todo
mundo conhece. “A Vulgata foi o alicerce da Igreja no
Ocidente”, explica o padre Luigi. Ela é tão influente, mas tão influente, que
até seus erros de tradução se tornaram clássicos. Ao traduzir uma passagem do
Êxodo que descreve o semblante do profeta Moisés, são Jerônimo escreveu em
latim: cornuta esse facies sua, ou seja, “sua face tinha chifres”. Esse detalhe
esquisito foi levado a sério por artistas como Michelangelo – sua famosa
escultura representando Moisés, hoje exposta no Vaticano, está ornada com dois
belos corninhos. Tudo porque Jerônimo tropeçou na palavra hebraica karan, que
pode significar tanto “chifre” quanto “raio de luz”. A tradução correta está na
Septuaginta: o profeta tinha o rosto iluminado, e não chifrudo. Apesar de erros
como esse, a Vulgata reinou absoluta ao longo da Idade Média – durante séculos,
não houve outras traduções.
O único jeito de disseminar o livro sagrado
era copiá-lo à mão, tarefa realizada pelos monges copistas. Eles raramente
saíam dos mosteiros e passavam a vida copiando e catalogando manuscritos
antigos. Só que, às vezes, também se metiam a fazer o papel de autores.
Após a queda do Império Romano, grande parte da literatura da Antiguidade grega e
romana se perdeu – foi graças ao trabalho dos monges copistas que livros como a
Ilíada e a Odisséia chegaram até nós. Mas alguns deles eram meio malandros:
costumavam interpolar textos nas Escrituras Sagradas para agradar a reis e
imperadores. No século 15, por exemplo, monges espanhóis trocaram o termo
“babilônios” por “infiéis” no texto do Antigo Testamento – um truque para
atacar os muçulmanos, que disputavam com os espanhóis a posse da península
Ibérica.
Escrituras em série
Tudo isso mudou após a invenção da imprensa, em 1455. Agora ninguém mais
dependia dos copistas para multiplicar os exemplares da Bíblia. Por
isso, o grande foco de mudanças no texto sagrado passou a ser outro: as
traduções.Em 1522, o pastor Martinho Lutero usou a imprensa para divulgar em
massa sua tradução da Bíblia, que
tinha feito direto do hebraico e do grego para o alemão. Era a primeira vez que
o texto sagrado era vertido numa língua moderna – e a nova versão trouxe várias
mudanças, que provocavam a Igreja (veja
quadro na pág. 65). Logo depois um britânico, William Tyndale, ousou traduzir a
Bíblia para o inglês. No Novo
Testamento, ele traduziu a palavra ecclesia por “congregação”, em vez de “igreja”, o
termo preferido pelas traduções católicas. A mudança nessa palavrinha era um
desafio ao poder dos papas: como era protestante, Tyndale tinha suas diferenças
com a Igreja. Resultado? Ele foi queimado
como herege em 1536. Mas até hoje seu trabalho é referência para as versões
inglesas do livro sagrado.
A Bíblia chegou ao nosso idioma em 1753 –
quando foi publicada sua primeira tradução completa para o português, feita
pelo protestante João Ferreira de Almeida. Hoje, a tradução considerada oficial
é a feita pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e lançada em
2001. Ela é considerada mais simples e coloquial que as traduções anteriores.
De lá para cá, a Bíblia ganhou o
mundo e as línguas. Já foi vertida para mais de 300 idiomas e continua um dos
livros mais influentes do mundo: todos os anos, são publicadas 11 milhões de
cópias do texto integral, e 14 milhões só do Novo Testamento.
Depois de tantos séculos de versões e contra-versões, ainda não há
consenso sobre a forma certa de traduzi-la. Alguns buscam traduções mais
próximas do sentido e da época original – como as passagens traduzidas do
hebraico pelo lingüista David Rosenberg na obra O Livro de J, de
1990. Outros acham que a Bíblia deve ser
modernizada para atrair leitores. O lingüista Eugene Nida, que verteu a Bíblia na
década de 1960, chegou ao extremo de traduzir a palavra “sestércios”, a antiga
moeda romana, por “dólares”. Em 2008, duas versões igualmente ousadas estão
agitando as Escrituras: a Green Bible (“Bíblia Verde”,
ainda sem versão em português), que destaca 1 000 passagens relacionadas à
ecologia – como o momento em que Jó fala sobre os animais –, e a Bible
Illuminated (‘Bíblia Iluminada”, em inglês), com
design ultramoderno e fotos de celebridades como Nelson Mandela e Angelina
Jolie.
A Bíblia se transforma, mas uma coisa não
muda: cada pessoa, ou grupo de pessoas, a interpreta de uma maneira diferente –
às vezes, com propósitos equivocados. Em pleno século 21, pastores
fundamentalistas tentam proibir o ensino da Teoria da
Evolução nas escolas dos EUA, sendo que a própria Igreja aceita
as teorias de Darwin desde a década de 1950. Líderes como o pastor Jerry
Falwell defendem o retorno da escravidão e o apedrejamento de adúlteros, e no
Oriente Médio rabinos extremistas usam trechos da Torá para justificar a
ocupação de terras árabes. Por quê? Porque está na Bíblia, dizem
os radicais. Não é nada disso. Hoje, os principais estudiosos afirmam que a Bíblia não deve
ser lida como um manual de regras literais – e sim como o relato da jornada,
tortuosa e cheia de percalços, do ser humano em busca de Deus. Porque
esse é, afinal, o verdadeiro sentido dessa árvore de histórias regada há 3 mil
anos por centenas de mãos, cabeças e corações humanos: a crença num sentido
transcendente da existência.
Top 5 pragas
I. Quando os hebreus eram escravos no Egito, o Senhor enviou 10 pragas
contra os opressores do povo escolhido. A primeira delas foi transformar toda a
água do país em sangue (Êxodo 7:21).
II. Como o faraó não libertava os hebreus, o Senhor radicalizou: matou,
numa só noite, todos os primogênitos do Egito. “E houve grande clamor no país,
pois não havia casa onde não houvesse um morto” (Êxodo 12:30).
III. Desgostoso com os pecados de Sodoma e Gomorra, Deus destruiu
as duas cidades com uma chuvarada de fogo e enxofre (Gênesis 19:24).
IV. Para punir as desobediências do rei Davi, o Senhor enviou uma
doença não identificada, que matou 70 mil homens e 200 mil mulheres e crianças
(2 Samuel, 24: 1-13).
V. Quando
a nação dos filisteus roubou a arca da Aliança, onde estavam guardados os 10
Mandamentos, o Senhor os castigou com um surto de hemorróidas letais. “Os
intestinos lhes saíam para fora e apodreciam” (1 Samuel 5:9) .
Os possíveis autores
1200 a.C. - Moisés
Segundo uma lenda judaica, a Torá (obra precursora da Bíblia) teria
sido escrita por ele. Mas há controvérsias,
pois existe um trecho da Torá que diz: “Moisés morreu e foi sepultado pelo
Senhor próximo a Fegor”. Ora, se Moisés é o autor do texto, como ele poderia
ter relatado a própria morte?
1000 a.C. - Javista
Viveu na corte do rei Davi, no antigo reino de Israel, e era um
aristocrata. Ou, quem sabe, uma aristocrata: para o crítico Harold Bloom,
Javista era mulher. Isso porque os personagens femininos da Bíblia (Eva e
Sara, por exemplo) são muito mais elaborados que os masculinos.
Século 4 a.C. - Esdras
Líder religioso que reformou o judaísmo e possível editor do Pentateuco
(5 primeiros livros da Bíblia). Vários
trechos bíblicos editados por ele pregam a violência: “Derrubareis todos os
altares dos povos que ides expropriar, queimareis as casas, e mudareis os nomes
desses lugares”.
Século 1 - Paulo
Nunca viu Cristo pessoalmente, mas foi o primeiro a escrever sobre ele.
Nascido na Turquia, Paulo viajou e fundou igrejas pelo Oriente Médio. Ele
escrevia cartas para essas igrejas, contando a incrível aventura de um tal
Jesus – que foi crucificado e ressuscitou.
Século 1 - Maria Madalena
Estava entre os discípulos favoritos de Jesus – e, diferentemente do que
o Vaticano sustentou durante séculos, nunca foi prostituta. Pelo contrário:
tinha influência no cristianismo e é a suposta autora do Apócrifo de Maria, um livro em que
fala sobre sua relação pessoal com Jesus e divulga os ensinamentos dele.
Século 1 - João
Escreveu o 4o evangelho do Novo Testamento (João) e o Livro do
Apocalipse, o último da Bíblia. Para
ele, Jesus não é apenas um messias – é um ser sobrenatural, a própria
encarnação de Deus. Essa interpretação mística
marca a ruptura definitiva entre judaísmo e fé cristã.
Século 5 - Jerônimo
Nascido no território da atual Hungria, este padre foi enviado a
Jerusalém com uma missão importantíssima: traduzir a Bíblia do grego
para o latim. Cometeu alguns erros, como dizer que o profeta Moisés tinha
chifres (uma confusão com a palavra hebraica karan, que na verdade significa
“raio de luz”).
Século 16 - William Tyndale
Possuir
trechos da Bíblia em qualquer idioma que não fosse o latim era crime. O
professor Tyndale não quis nem saber, traduziu tudo para o inglês, e acabou na
fogueira. Mas seu trabalho foi incrivelmente influente: é a base da chamada
“Bíblia do Rei James”, até hoje a tradução mais lida nos países de língua
inglesa.
Top 5 matanças
I. Um grupo de meninos malcriados zombou da calvície do profeta Eliseu.
Pra quê! Na hora, dois ursos famintos saíram de um bosque e comeram as crianças
(2 Reis 2:24).
II. Cercado por um exército de filisteus, o herói Sansão apanhou a
mandíbula de um jumento morto. Usando o osso como arma, ele massacrou mil
inimigos (Juízes, 15:16).
III. O profeta Elias convidou os sacerdotes do deus Baal
para uma competição de orações. Era uma armadilha: Elias incitou o povo, que
linchou os pagãos (1 Reis 18:40).
VI. Os judeus haviam perdido a fé e começaram a adorar um bezerro de
ouro. Moisés ficou furioso e mandou sacerdotes levitas matar 3 mil infiéis
(Êxodo 32:19).
V. A
nação dos amalequitas disputava o território de Canaã com os judeus. O Senhor
ordena que todos os amalequitas sejam chacinados (1 Samuel 15:18).
Top 5 satanagens
I. Após a destruição de Sodoma, os únicos sobreviventes eram Ló e suas
duas filhas. As filhas de Lot embebedaram o pai e tiveram com ele a noite mais
incestuosa da Bíblia (Gênesis 19:31).
II. O Cântico dos Cânticos, atribuído ao rei Salomão, é altamente
erótico. Um dos trechos: “Teu corpo é como a palmeira, e teus seios, como
cachos de uvas” (Cânticos 7:7).
III. Os anjos do Senhor tiveram chamegos ilícitos com mulheres mortais.
“Vendo os Filhos de Deus que as
filhas dos homens eram formosas, tomaram-nas como mulheres, tantas quanto
desejaram” (Gênesis 6:2).
IV. A Bíblia diz que os antigos egípcios eram
muito bem-dotados. Após a fuga para Canaã, a judia Ooliba tem saudades dos
tempos em que se prostituía no Egito. Tudo porque “seus amantes (...)
ejaculavam como cavalos” (Ezequiel 23:20).
V. O
hebreu Onã casou com a viúva de seu irmão, mas não conseguia fazer sexo com ela
– preferia o prazer solitário. Do nome dele vem o termo “onanismo”, que
significa masturbação (Gênesis 38:9).
As história da história
Como o livro sagrado evoluiu ao
longo dos tempos
Tanach - Século 5 a.C.
É a Bíblia judaica, e tem 3 livros: Torá
(palavra hebraica que significa “lei”), Nebiim (“profetas”) e Ketuvim (“escritos”).
É parecida com a Bíblia atual,
pois os católicos copiaram seus escritos. Contém as sementes do monoteísmo e da
ética religiosa, mas também pregações de violência. A primeira das bíblias tem
trechos ambíguos e misteriosos – algumas passagens dão a entender que Javé não
é o único deus do Universo.
Septuaginta - Século 3 a.C.
O Oriente Médio era dominado pelos gregos e pelos macedônios. Muitos
judeus viviam em cidades de cultura grega,
como Alexandria, e desejavam adaptar sua religião aos
novos tempos. Diz a lenda que Ptolomeu, rei do Egito, reuniu um grupo de 72
sábios judeus para traduzir a Tanach – e fizeram tudo em 72 dias. Por isso, o
resultado é conhecido como Septuaginta. Inclui textos que não constam da
Tanach.
Novo Testamento - Século 1
A língua do Antigo Testamento é o hebraico, mas o Novo Testamento foi
escrito num dialeto grego chamado coiné. Contém os relatos sobre vida,
milagres, morte e ressurreição de Jesus – os evangelhos. Em alguns trechos, vai
deixando evidente a divergência entre cristianismo e judaísmo. É o caso, por
exemplo, do Evangelho de João, em que Jesus é descrito como uma encarnação de Deus (coisa
na qual os judeus não acreditavam).
Católica - Século 4
Seus autores decidiram incluir 7 livros que os judeus não reconheciam.
São os chamados Deuterocanônicos: Tobias, Judite, Sabedoria, Eclesiástico,
Baruque, Macabeus 1 e 2 (mais trechos dos livros Daniel e Ester). A Bíblia católica
bate na tecla do monoteísmo: a palavra hebraica Elohim, usada na Tanach para
designar a divindade, é o plural de El, um deus cananeu.
Mas foi traduzida no singular e virou “Senhor”.
Ortodoxa - Por volta do século 4
É baseada na Septuaginta, mas também inclui livros considerados
apócrifos por católicos e protestantes: Esdras 1, Macabeus 3 e 4 e o Salmo 151.
A tradução é mais exata (nesta Bíblia, Moisés
nunca teve chifres, um erro de tradução introduzido pela Bíblia latina),
e os escritos não são levados ao pé da letra: para os ortodoxos, o que conta
são as interpretações do texto bíblico, feitas por teólogos ao longo dos
séculos.
Protestante - Século 16
Ao
traduzir a Bíblia para o alemão, Martinho Lutero excluiu os livros
Deuterocanônicos e mudou algumas coisas. Um exemplo é a palavra grega metanoia,
que na Bíblia católica significa “fazer penitência” – uma referência à
confissão dos pecados, um dos sacramentos católicos. Já Lutero traduziu
metanoia como “reviravolta”. Para ele, confessar os pecados era inútil. O
importante era transformar a vida pela fé.
Top 5 milagres
I. O maior de todos os milagres divinos foi o primeiro: a Criação do
mundo, pelo poder da palavra. “E Deus disse:
que haja luz. E houve luz” (Gênesis 1:3).
II. Para dar-lhe uma amostra de seus poderes, o Senhor leva Ezequiel a
um campo cheio de esqueletos – e os traz de volta à vida. “O vento do Senhor
soprou neles, e viveram” (Ezequiel, 37; 1-28).
III. Graças à benção divina, o herói Sansão tinha a força de muitos
homens. Certa vez, foi atacado por um leão. “O espírito do Senhor deu-lhe
poder, e Sansão destroçou a fera com as próprias mãos, como se matasse um
cabrito” (Juízes 14:6).
IV. Josué liderava uma batalha contra os amalequitas, mas o Sol estava
se pondo. Como não queria lutar no escuro, o hebreu pediu ajuda divina – e o
Sol ficou no céu (Josué 10:13).
V. Para
fugir do Egito, os hebreus precisavam atravessar o mar Vermelho. E não tinham
navios. Moisés ergueu seu bastão e as águas do mar se dividiram. Após a
passagem dos hebreus, o profeta deixou que as ondas se fechassem sobre os
exércitos do faraó (Êxodo 14; 21-30).
Para saber mais
Karen Armstrong, Jorge
Zahar Editora, 2007.
Who Wrote the Bible?
Richard
Elliott Friedman, HarperOne, 1997.
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