Sobre a atitude do partido operário em relação à religião
Vladimir I. Lênin
V. I. Lênin – publicado no
jornal Novaia Zizn nº 28 (dezembro-1905)
( Fonte: www.ateuseanticapitalistas.tk
)
(...) O interesse por tudo
o que está ligado à religião abarcou indubitavelmente vastos círculos da
“sociedade” e penetrou nas fileiras da intelectualidade próxima do movimento
operário e também em certos círculos operários. A social-democracia tem a
obrigação absoluta de apresentar uma exposição de sua atitude em relação à
religião.
A social-democracia baseia
toda a sua concepção do mundo no socialismo científico, isto é, no marxismo. A
base filosófica do marxismo, como Marx e Engels repetidamente declararam, é o
materialismo dialético, que assimilou inteiramente as tradições históricas do
materialismo do século XVIII em França e de Feuerbach (1ª metade do século XIX)
na Alemanha, um materialismo incondicionalmente ateísta, decididamente hostil a
qualquer religião. Recordemos que todo o Anti-Düring de Engels, lido no
manuscrito por Marx, acusa o materialista e ateísta Düring de inconseqüência do
seu materialismo, de deixar brechas à religião e à filosofia religiosa.
Recordemos que, na sua obra sobre Ludwig Feuerbach, Engels o censura por ele
não lutar contra a religião para a aniquilar mas para a renovar, para criar uma
religião nova e “elevada”, etc. A religião é o ópio do povo – esta máxima de
Marx é a pedra angular de toda a concepção do mundo do marxismo na questão da religião.
Todas as religiões e igrejas atuais, todas e quaisquer organizações religiosas,
são sempre encaradas pelo marxismo como órgãos da reação burguesa que servem
para defender a exploração e para entontecer a classe operária.
E ao mesmo tempo, contudo,
Engels condenou repetidamente as tentativas, de pessoas que queriam ser “mais
de esquerda” ou “mais revolucionárias” do que a social-democracia, de
introduzir no programa do partido operário um reconhecimento explícito do
ateísmo no sentido de uma declaração de guerra à religião. Em 1874, falando
sobre o famoso manifesto dos fugitivos da comuna, os blanquistas que viviam
exilados em Londres, Engels trata como estupidez a sua estrepitosa proclamação
de guerra à religião, afirmando que essa declaração de guerra é o melhor meio
de fazer reviver o interesse pela religião e de dificultar uma real extinção da
religião. Engels culpa os blanquistas de não serem capazes de compreender que
só a luta de classe das massas operárias, atraindo em todos os aspectos as mais
amplas camadas do proletariado para uma prática social consciente e
revolucionária, está de fato em condições de libertar as massas oprimidas do
jugo da religião, enquanto a proclamação da guerra à religião como tarefa
política do partido operário é uma frase anarquista. E em 1877, no Anti-Düring,
atacando impiedosamente as menores concessões do filósofo Düring ao idealismo e
a religião, Engels condena não menos decididamente a idéia pretensamente
revolucionária de Düring de proibir a religião na sociedade socialista.
Declarar semelhante guerra à religião significa, diz Engels, “ser mais
bismarckista que Bismarck”, isto é, repetir a estupidez da luta de Bismarck
contra os clericais (a famigerada “luta pela cultura”, Kulturkampf, isto é, a
luta de Bismarck nos anos 70 contra o partido alemão dos católicos, o partido
do “centro”, por meio da perseguição policial do catolicismo). Com tal luta
Bismarck só reforçou o clericalismo militante dos católicos, só prejudicou a
causa da verdadeira cultura, pois empurrou para primeiro plano divisões
religiosas em vez de divisões políticas, desviou a atenção de algumas camadas
da classe operária e da democracia das tarefas urgentes da luta de classes e da
luta revolucionária para o mais superficial e falso anticlericalismo burguês.
Acusando Düring, que queria ser ultra-revolucionário, de querer repetir sob
outra forma a mesma estupidez de Bismarck, Engels exigia do partido operário
que soubesse trabalhar pacientemente para organizar e esclarecer o
proletariado, o que conduzia à extinção da religião, e não lançar-se nas
aventuras de uma guerra política contra a religião. “Declarar a religião um
assunto privado” – esta célebre ponto do Programa de Erfurt (1891) consolidou a
referida tática política da social-democracia.
Esta tática conseguiu
transformar-se já numa rotina, conseguiu gerar uma nova deturpação do marxismo
para o lado oposto, para o lado do oportunismo. Começou-se a interpretar a tese
do programa de Erfurt no sentido de que nós, social-democratas, o nosso partido
considera a religião um assunto privado, que para nós, como sociais democratas,
para nós, como partido, a religião é um assunto privado. Sem em entrar em
polêmica direta com esta concepção oportunista, nos anos 90 Engels considerou
necessário manifestar-se decididamente contra ela não de uma forma polêmica mas
positiva. A saber: Engels fê-lo sob a forma de uma declaração, propositadamente
sublinhada por ele, de que a social-democracia considera a religião um assunto
privado em relação ao Estado, mas não, de modo nenhum, em relação a si própria,
não em relação ao marxismo, não em relação ao partido operário.
Tal é a história externa
das manifestações de Marx e Engels acerca da questão da religião. Para pessoas
com uma atitude descuidada em relação ao marxismo, para pessoas que não sabem
ou não querem pensar, esta história é um emaranhado de absurdas contradições e
de vacilações do marxismo: que misturada, dizem elas, de ateísmo “conseqüente”
e de “condescendências” para com a religião, que oscilação “sem princípios”
entre a guerra revolucionária contra Deus e o desejo cobarde de “se adaptar”
aos operários crentes, o medo de os assustar, etc., etc. Na literatura dos
charlatões anarquistas podem encontrar-se não poucos ataques deste tipo contra
o marxismo.
Mas quem seja minimamente
capaz de ter uma atitude séria em relação ao marxismo, de refletir nas suas
bases filosóficas e na experiência da social-democracia internacional, verá
facilmente que a tática do marxismo em relação à religião é profundamente
meditada por Marx e Engels, que aquilo que os diletantes ou ignorantes
consideram vacilações é uma conclusão direta e inevitável do marxismo. Seria
profundamente errado pensar que a aparente “moderação” do marxismo em relação à
religião se explica por assim chamadas considerações “táticas” no sentido de
querer “não assustar”, etc. Pelo contrário, a linha política do marxismo está,
também nesta questão, indissoluvelmente ligada às suas bases filosóficas.
O marxismo é materialismo.
Como tal, ele é tão implacavelmente hostil à religião como o materialismo dos
enciclopedistas do século XVIII ou o materialismo de Feuerbach. Mas o
materialismo dialético de Marx e Engels vai mais longe que os enciclopedistas e
Feuerbach, aplicando a filosofia materialista ao domínio da história, ao
domínio das ciências sociais. Devemos lutar contra a religião. Isto é o á-bê-cê
de todo o materialismo e, por conseguinte, também do marxismo. Mas o marxismo
não é um materialismo que se deteve no á-bê-cê. O marxismo vai mais longe. Ele
diz: é preciso saber lutar contra a religião, e para isso é preciso explicar de
modo materialista a fonte da fé e da religião entre as massas. Não se pode
limitar a luta contra a religião a uma prédica ideológica abstrata, não se pode
reduzi-la a essa prédica; é preciso pôr esta luta em ligação com a prática
concreta do movimento de classe dirigido para a eliminação das raízes sociais
da religião. Por que é que a religião se mantém nas camadas atrasadas do
proletariado urbano, em vastas camadas do semiproletariado e também na massa do
campesinato ? Por causa da ignorância do povo, responde o progressista burguês,
o radical ou o materialista burguês. Conseqüentemente, abaixo a religião, viva
o ateísmo, a difusão das concepções ateístas é a nossa principal tarefa. O marxista
diz: não é verdade. Essa concepção é um superficial culturalismo limitado e
burguês. Essa explicação explica de modo insuficientemente profundo, não de
modo materialista mas idealista, as raízes da religião. Nos países capitalistas
contemporâneos são raízes principalmente sociais. A opressão social das massas
trabalhadoras, a sua aparente impotência completa perante as forças cegas do
capitalismo, que causa todos os dias e a todas as horas aos simples
trabalhadores sofrimentos mil vezes mais horrível e martírios mil vezes mais
bárbaros do que quaisquer acontecimentos como guerras, terremotos, etc. – eis
em que consiste a mais profunda raiz atual da religião. “O medo criou os
deuses” . O medo da força cega do capitalismo, que é cega porque não pode ser prevista
pelas massas do povo, que a cada vida do proletário e do pequeno proprietário
ameaça infligir-lhe e lhe inflige uma “súbita”, “inesperada”, “acidental”,
ruína, a perdição, a sua transformação num pobre, num miserável, numa
prostituta, num morto de fome – eis a raiz da religião atual que o materialista
deve ter em vista em primeiro lugar e acima de tudo se não quiser permanecer um
aprendiz de materialista. Nenhum livro educativo arrancará a religião de entre
as massas oprimidas pelos trabalhos forçados do capitalismo, dependentes das
cegas forças destruidoras do capitalismo, enquanto essas massas não aprenderem
elas próprias a lutar unida, organizada, sistemática e conscientemente contra
esta raiz da religião, contra o domínio do capital sob todas as formas.
Decorrerá aqui que o livro
educativo contra a religião é prejudicial ou inútil ? Não. O que daqui decorre
não é nada disso. Daqui decorre que a propaganda ateísta da social-democracia
deve ser subordinada à sua tarefa fundamental: desenvolver a luta de classe das
massas exploradas contra os exploradores. Uma pessoa que não tenha refletido
nas bases do materialismo dialético, isto é, da filosofia de Marx e Engels,
pode não compreender (ou, pelo menos, não compreender logo) esta tese. Como é
isso ? Subordinar a propaganda ideológica, a prédica de certas idéias, a luta
contra o inimigo da cultura e do progresso que persiste há milênios (isto é,
contra a religião) à luta de classe, isto é, à luta por determinados objetivos
práticos nos domínios econômico e político?
Semelhante objeção
pertence ao número das objeções correntes ao marxismo que testemunham uma
completa incompreensão da dialética de Marx. A contradição que perturba aqueles
que objetam desta maneira é uma contradição viva da vida viva, isto é, uma
contradição dialética, não uma contradição verbal, inventada. Separar por uma
fronteira absoluta e intransponível a propaganda teórica do ateísmo, isto é, a
destruição das crenças religiosas em certas camadas do proletariado, e o êxito,
a marcha, as condições da luta de classe destas camadas – significa raciocinar
de modo não dialético, transformar numa fronteira absoluta aquilo que é uma
fronteira móvel e relativa, significa desligar forçosamente aquilo que está
indissoluvelmente ligado na realidade viva.
Tomemos um exemplo. O
proletariado de uma dada região e de um dado ramo da indústria divide-se,
suponhamos, numa camada avançada de social-democratas bastante conscientes, que
são evidentemente ateus, e em operários bastante atrasados, ligados ainda ao campo
e ao campesinato, que acreditam em Deus, vão à igreja ou se encontram mesmo sob
a influência direta do sacerdote local, que fundou, admitamos, uma associação
operária cristã. Suponhamos, além disso, que a luta econômica nessa localidade
conduziu a uma greve. Para um marxista é obrigatório colocar o êxito do
movimento grevista em primeiro plano, é obrigatório contrariar decididamente a
divisão dos operários nesta luta em ateus e cristãos, lutar decididamente
contra essa divisão. A propaganda ateísta pode revelar-se nessas condições
inútil e prejudicial, não do ponto de vista das considerações acerca de não
assustar as camadas atrasadas, acerca da perda do mandato nas eleições, etc.,
mas do ponto de vista do progresso real da luta de classes, que nas condições
da sociedade capitalista contemporânea conduzirá cem vezes melhor os operários
cristãos à social-democracia e ao ateísmo do que a mera prédica ateísta.
O propagandista do ateísmo
nesse momento e nessas condições apenas faria o jogo do padre e dos padres, que
nada desejam tanto como substituir a divisão dos operários segundo a
participação na greve pela divisão segundo a crença em Deus. Um anarquista, ao
pregar a guerra contra Deus a qualquer preço, estaria de fato a ajudar os
padres e a burguesia (como os anarquistas ajudam sempre de fato a burguesia).
Um marxista deve ser materialista, isto é, inimigo da religião, mas um
materialista dialético, isto é, que coloca a luta contra a religião não de modo
abstrato, não no terreno da propaganda abstrata, puramente teórica, sempre
igual a si própria, mas de modo concreto, no terreno da luta de classes que tem
um lugar de fato e que educa as massas mais e melhor que tudo. Um marxista deve
saber ter em conta toda a situação concreta, encontrar sempre a fronteira entre
o anarquismo e o oportunismo (esta fronteira é relativa, móvel, mutável, mas
existe), não cair no “revolucionarismo” abstrato, verbal, de fato vazio, do
anarquista nem no filistinismo e no oportunismo pequeno-burguês ou do
intelectual liberal, que em sua luta contra a religião, esquece esta sua
tarefa, se reconcilia com a crença em Deus, se guia não pelos interesses da
luta de classes mas por cálculos pequenos e mesquinhos: não ofender, não
afastar, não assustar, pela sapientíssima regra: "viva e deixe viver os
outros", etc., etc.
É do ponto de vista
mencionado que se devem resolver todas as questões parciais que dizem respeito
à atitude da social-democracia em relação à religião. Por exemplo, avança-se
freqüentemente a questão de saber se um sacerdote pode ser membro do partido
social-democrata, e habitualmente responde-se positivamente e sem quaisquer
reservas a esta questão, referindo-se a experiência dos partidos
social-democratas europeus. Mas esta experiência foi gerada não só pela
aplicação da doutrina do marxismo ao movimento operário mas também pelas
condições históricas particulares do Ocidente, ausentes na Rússia (falaremos
adiante dessas condições), de modo que aqui uma resposta incondicionalmente
positiva não é correta. Não se pode declarar de uma vez para sempre e para
todas as condições que os sacerdotes não podem ser membros do partido
social-democrata, mas não se pode de uma vez para sempre estabelecer a regra
contrária.
Se um sacerdote se dirige
a nós para um trabalho político conjunto e realiza conscienciosamente o
trabalho partidário, não se manifestando contra o programa do partido, podemos
aceitá-lo nas fileiras da social-democracia, porque a contradição do espírito e
das bases do nosso programa com as convicções religiosas do sacerdote poderiam
permanecer nessas condições uma contradição pessoal que só a ele diz respeito,
e uma organização política não pode submeter os seus membros a provas acerca da
ausência de contradição entre as suas concepções e o programa do partido. Mas,
evidentemente, semelhante caso poderia ser uma rara exceção mesmo na Europa, e
na Rússia ele é pouquíssimo provável. E se, por exemplo, um sacerdote entrasse
no partido social-democrata e se pusesse a fazer neste partido, como seu
trabalho principal e quase único, uma ativa prédica das concepções religiosas,
o partido deveria absolutamente expulsá-lo do seu seio. Nós devemos não só
admitir como atrair sem falta para o partido social-democrata todos os
operários que conservam a fé em Deus, somos absolutamente contra a menor
afronta às suas convicções religiosas, mas atraímo-los para se educarem no
espírito do nosso programa e não para lutarem ativamente contra ele. Nós
admitimos dentro do partido a liberdade de opinião, mas em certos limites,
determinados pela liberdade de agrupamento: não somos obrigados a andar de mãos
dadas com pregadores ativos de concepções repudiadas pela maioria do partido.
Outro exemplo: pode-se em
todas as condições condenar igualmente os membros do partido social-democrata
por declararem “o socialismo é minha religião” e por defenderem concepções
correspondentes a esta declaração ? Não. O desvio do marxismo (e,
conseqüentemente, também do socialismo) é aqui indubitável, mas o significado
deste desvio, o seu peso específico, por assim dizer, podem ser diferentes em
situações diferentes. Uma coisa é um agitador ou uma pessoa que intervém
perante a massa operária falar assim para ser mais compreensível, para começar
a exposição, para ilustrar de modo mais real as suas concepções em termos mais
habituais para a massa não desenvolvida. Outra coisa é um escritor começar a
pregar a “construção de Deus” ou um socialismo construtor de Deus (no espírito,
por exemplo, dos nossos Lunatchárski e companhia). Tanto quanto no primeiro
caso a condenação poderia ser desprovida de motivo e até uma deslocada
restrição da liberdade do agitador, da liberdade de influência “pedagógica”,
assim no segundo caso a condenação do partido é necessária e obrigatória. A
proposição “o socialismo é uma religião” é para uns uma forma de passar da
religião para o socialismo, para outros do socialismo para a religião.
Passemos agora às condições que geraram no Ocidente
a interpretação oportunista da tese: “declarar a religião um assunto privado”.
Naturalmente, há aqui influência de causas gerais que engendram o oportunismo
em geral, como o sacrifício a vantagens momentâneas dos interesses fundamentais
do movimento operário. O partido do proletariado exige do Estado que declare a
religião um assunto privado, não considerando de modo nenhum “assunto privado”
a questão da luta contra o ópio do povo, da luta contra as superstições
religiosas, etc. Os oportunistas deturpam o assunto como se o partido
social-democrata considerasse a religião um assunto privado!
Mas além da deturpação oportunista
habitual (que de modo nenhum foi esclarecida no debate realizado pela nossa
fração na Duma ao discutir-se a intervenção sobre religião) existem condições
históricas particulares que provocaram a atual indiferença excessiva, se assim
nos podemos exprimir, das social-democracias européias em relação à questão da
religião. São condições de dois tipos. Em primeiro lugar, a tarefa da luta
contra a religião é uma tarefa histórica da burguesia revolucionária, e no
Ocidente esta tarefa foi realizada (ou começada a realizar) pela democracia
burguesa na época das suas revoluções ou dos seus ataques contra o feudalismo e
o medievalismo. Tanto em França quanto na Alemanha há uma tradição de guerra
burguesa contra religião, começada muito antes do socialismo (os
enciclopedistas, Feuerbach). Na Rússia, de acordo com as condições da nossa
revolução democrática burguesa, também esta tarefa recai quase inteiramente
sobre os ombros do proletariado. A democracia pequeno-burguesa (populista) fez
neste aspecto no nosso país não demasiado muito (como pensam os novos
democratas-constitucionalistas cem-negristas ou membros das centúrias negras
democratas-constitucionalistas da Vékhi) mas demasiado pouco em comparação com
a Europa.
O socialismo e a religião
(...) A exploração
econômica dos operários causa e gera inevitavelmente todos os tipos de opressão
política, de humilhação social, de embrutecimento e obscurecimento da vida
espiritual e moral das massas. Os operários podem alcançar uma maior ou menor
liberdade política para lutarem pela sua libertação econômica, mas nenhuma
liberdade os livrará da miséria, do desemprego e da opressão enquanto não for
derrubado o poder do capital. A religião é uma das formas de opressão
espiritual que pesa em toda a parte sobre as massas populares, esmagadas pelo
seu perpétuo trabalho para outros, pela miséria e pelo isolamento. A impotência
das classes exploradas na luta contra os exploradores gera tão inevitavelmente
a fé numa vida melhor além-túmulo como a impotência dos selvagens na luta
contra a natureza gera a fé em seus deuses, diabos, milagres, etc. Àqueles que toda a vida trabalham e passam
miséria, a religião ensina a humildade e a paciência na vida terrena,
consolando-o com a esperança da recompensa celeste. E àqueles que vivem do
trabalho alheio a religião ensina a beneficência na vida terrena, propondo-lhes
uma justificação muito barata para toda a sua existência de exploradores e
vendendo-lhes a preço módico bilhetes para a felicidade celestial.
A religião é o ópio do
povo. A religião é uma espécie de má aguardente espiritual na qual os escravos
do capital afogam a sua imagem humana, as suas reivindicações de uma vida
minimamente digna do homem. Mas o escravo que tem consciência da sua escravidão
e se ergueu para a luta pela sua libertação já semideixou de ser escravo. O
operário consciente moderno, formado pela grande indústria fabril, educado pela
vida urbana, afasta de si com desprezo os preceitos religiosos, deixa o céu à
disposição dos padres e dos beatos burgueses, conquistando para si uma vida
melhor aqui, na terra. O proletariado moderno coloca-se ao lado do socialismo,
que integra a ciência na luta contra o nevoeiro religioso e liberta os
operários da fé na vida de além-túmulo por meio da sua união para uma
verdadeira luta por uma melhor vida terrena.
A religião deve ser
declarada um assunto privado – com estas palavras exprime-se habitualmente a
atitude dos socialistas em relação à religião. Mas é preciso definir com
precisão o significado destas palavras para que elas não possam causar nenhum
mal-entendido. Exigimos que a religião seja um assunto privado em relação ao
Estado, mas não podemos de modo nenhum considerar a religião um assunto privado
em relação ao nosso próprio partido. O Estado não deve ter nada que ver com a
religião, as sociedades religiosas não devem estar ligadas ao poder de Estado.
Cada um deve ser absolutamente livre de professar qualquer religião que queira
ou de não aceitar nenhuma religião, isto é, de ser ateu, coisa que todo o
socialista geralmente é. São absolutamente inadmissíveis quaisquer diferenças
entre os cidadãos quanto aos seus direitos de acordo com as crenças religiosas.
Deve mesmo ser abolida qualquer referência a uma ou outra religião dos cidadãos
em documentos oficiais. Não deve haver quaisquer donativos a uma igreja de
Estado, quaisquer donativos de somas do Estado a sociedades eclesiásticas e
religiosas, que devem tornar-se associações absolutamente livres e
independentes do poder de cidadãos que pensam da mesma maneira. Só a satisfação
até ao fim destas reivindicações pode acabar com o passado vergonhoso e maldito
em que a igreja se encontrava numa dependência servil em relação ao Estado e em
que os cidadãos russos se encontravam numa dependência servil em relação à
igreja de Estado, em que existiam e eram aplicadas leis medievais e
inquisitoriais (que ainda hoje permanecem nos nossos códigos e regulamentos
penais) que perseguiam pessoas pela sua crença ou descrença, que violentavam a
consciência do homem (...). Completa separação da igreja e do Estado – tal é a
reivindicação que o proletariado socialista apresenta ao Estado atual e à
igreja atual.
(...) Em relação ao
partido do proletariado socialista a religião NÃO é um assunto privado. O nosso
partido é uma associação de combatentes conscientes e de vanguarda pela
libertação da classe operária. Essa associação não pode e não deve ter uma
atitude indiferente em relação à inconsciência, à ignorância ou ao
obscurantismo sob a forma de crenças religiosas. Reivindicamos a completa separação
da igreja e do Estado para lutar contra o nevoeiro religioso com armas
puramente ideológicas e só ideológicas, com a nossa imprensa, com a nossa
palavra. Mas nós fundamos a nossa associação, o POSDR, entre outras coisas
precisamente para essa luta contra qualquer entontecimento religioso dos
operários. E para nós a luta ideológica não é um assunto privado mas um assunto
de todo o partido, de todo o proletariado.
Se assim é, por que é que
não declaramos no nosso programa que somos ateus ? Por que é que não proibimos
os cristãos e os que acreditam em Deus de entrar para o nosso partido ? A
resposta a esta questão deve esclarecer a importantíssima diferença na maneira
burguesa-democrática e social-democrata de colocar a questão da religião.
O nosso programa assenta
todo numa concepção do mundo científica, a saber, a concepção do mundo
materialista. A explicação do nosso programa inclui por isso necessariamente
também a explicação das verdadeiras raízes históricas e econômicas do nevoeiro
religioso. A nossa propaganda inclui também necessariamente a propaganda do
ateísmo; a edição da correspondente literatura científica, que o poder de
Estado autocrático-feudal rigorosamente proibia e perseguia até agora, deve
agora constituir um dos ramos do nosso trabalho partidário. Teremos agora,
provavelmente, de seguir o conselho que Engels* uma vez deu aos socialistas
alemães: traduzir e difundir maciçamente a literatura iluminista e ateísta
francesa do século XVIII.
Mas ao fazê-lo não devemos
em caso nenhum cair num modo abstrato e idealista de colocar a questão
religiosa “a partir da razão”, fora da luta de classes, como não poucas vezes é
feito pelos democratas radicais pertencentes à burguesia. Seria um absurdo
pensar que, numa sociedade baseada na opressão e embrutecimento infindáveis das
massas operárias, se pode, puramente por meio de propaganda, dissipar os
preconceitos religiosos. Seria estreiteza burguesa esquecer que o jugo da
religião sobra a humanidade é apenas o produto e reflexo do jugo econômico que
existe dentro da sociedade. Não é com nenhum livro nem com nenhuma propaganda
que se pode esclarecer o proletariado se não o esclarecer a sua própria luta
contra as forças negras do capitalismo. A unidade desta luta realmente
revolucionária da classe oprimida pela criação do paraíso na terra é mais
importante para nós do que a unidade de opiniões dos proletários sobre o
paraíso no céu.
É por isso que não
declaramos nem devemos declarar o nosso ateísmo no nosso programa; é por isso
que não proibimos nem devemos proibir aos proletários que conservaram estes ou
aqueles vestígios dos velhos preconceitos que se aproximem do nosso partido.
(...)
* F. Engels, Literatura de refugiados, artigo II:
Programa dos Refugiados Blanquistas da Comuna
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